Obrigada, Zelensky, por evocares o “nosso” 25 de Abril
É que este é nosso, teu e meu; não pertence a Carmo Afonso, nem a nenhum partido.
Foi com profunda indignação que li o artigo de última página, de dia 22 de Abril de 2022, assinado por Carmo Afonso (C.A.). Indigna-me em especial o facto de, abusivamente e de forma arrogante, a colunista se permitir afirmar que quem esteve “contra a Guerra Colonial e participou na revolução (como chama ao 25 de Abril) não idolatra Zelensky. O que sabe Carmo Afonso? Trata-se de um insulto a todos os que combateram a ditadura e a guerra colonial, quando era perigoso, e que agora se solidarizam, de forma coerente com os seus valores éticos, sem qualquer “mas”, com o sofrimento e a resistência dos ucranianos e condenam veementemente a guerra de agressão e de invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin.
Historiadora e cidadã portuguesa, considero hoje o dia 25 de Abril de 1974 como o mais feliz da minha vida, tal como uma larga maioria de portugueses, que prontamente saíram à rua nesse dia para acabar com “o estado” a que havia chegado Portugal, conforme disse Salgueiro Maia aos seus soldados, em Santarém, antes de se dirigir a Lisboa, para derrubar a ditadura. Vivi, como muitos, em quase estado de “levitação”, comoção e entusiasmo, a libertação dos presos políticos, bem como o fim da polícia política, do aparelho censório e de todas as instituições ditatoriais.
O 25 de Abril foi também o início de um período de grande felicidade, pois tudo no futuro parecia estar em aberto. Para mim, pessoalmente, como para muitos, terminava a ameaça da prisão e da tortura às mãos da PIDE/DGS, por actuar politicamente contra a ditadura portuguesa e a guerra colonial. Às mãos do MFA, o dia 25 de Abril de 1974 foi, para a maioria, o início do período revolucionário e da transição para a democracia em Portugal, que hoje já conta mais tempo do que os longos 48 anos de ditadura, entre o golpe de Estado militar de 1926 a 1974.
Deixo passar os comentários subjectivos e frívolos – como a própria C.A. qualifica – da colunista, ao considerar não empolgantes nem brilhantes as palavras do Presidente Zelensky, que, com os ucranianos, está a defender o seu país, resistindo corajosamente a uma guerra imposta pela criminosa invasão bélica de Putin e dos seus cúmplices. No dia 21 de Abril, todos vimo-lo e ouvimo-lo a descrever a destruição, os massacres, as torturas e as violações de civis, mulheres, idosos, crianças e até bebés, pelas tropas russas a mando do autocrata Putin, que condecorou posteriormente os perpetradores desses crimes.
Ouvimos os pedidos de armamento pesado e de endurecimento das sanções à Rússia, face aos nossos governantes, deputados e convidados presentes na Assembleia da República. Enquanto cidadã, espero que os pedidos sejam atendidos, que a solidariedade e a empatia com os ucranianos continue e gostei de ver os representantes que elegemos, excepto muito poucos, aplaudirem longamente e de pé Zelensky. Senti-me representada e, como sempre, agradecida à nossa democracia, inaugurada em 25 de Abril de 1974. É certo que senti vergonha alheia e até cólera relativamente à falta de empatia nas palavras expressas pela deputada do PCP, atacando os agredidos, sem uma palavra contra os invasores.
Eu esperava, e agradeço enquanto portuguesa que ama o que representa o 25 de Abril, que o Presidente Zelensky se tivesse referido a essa data superlativa da nossa História recente. Aliás, no mesmo dia 21 de Abril, com outros historiadores, eu estive em Setúbal, numa iniciativa organizada pela respectiva câmara municipal, pelo Diário de Notícias e pela TSF, precisamente a debater sobre a história do e a historiografia do 25 de Abril, data que faz parte da História de todos os portugueses. Relativamente a algo, concordo com C.A.: no facto de que, para quem tem acompanhado as suas intervenções noutros países, Zelensky cria uma real “empatia evocando eventos históricos dos países seus receptores”.
Fê-lo, por exemplo, no Parlamento espanhol, ao recordar o bombardeamento de Guernica pelos nazis e fascistas. Por isso, era previsível que se referisse, em 21 de Abril, à data que a maioria dos portugueses comemora quatro dias depois. Mas assinalo a enorme generosidade de Zelensky, ao tomar tempo, num momento de combate e de resistência contra uma odiosa guerra de agressão que destrói o seu país e mata os seus cidadãos, para lembrar uma data que, para os portugueses, está envolta em felicidade e está muito longe do terrível sofrimento dos ucranianos.
Quanto ao que queriam então o povo português e os militares do MFA que levaram a cabo o golpe de Estado que derrubou a ditadura, deixo a caracterização desses acontecimentos aos historiadores e aos jornalistas. E estes sabem que houve dois episódios que marcaram esse dia – e data – e que o levaram muito mais longe do que dizia o próprio programa dos sublevados do MFA. Esses dois episódios que marcaram a continuação da nossa História recente foram a tomada da sede da PIDE/DGS, em 26 de Abril, e a libertação dos presos políticos, em Caxias e Peniche, de 26 para 27 e a 27 de Abril. Mas haverá tempo para falarmos da História do 25 de Abril de 1974 e do que se lhe seguiu, nas comemorações do seu 50.º aniversário, em boa hora já iniciadas e cuja comissária é a minha colega e amiga historiadora Maria Inácia Rezola.
Não, a “História não nos troca as voltas”, como diz C.A., e chego ao que me causa profunda indignação na sua crónica. Trata-se das suas afirmações, segundo as quais, curiosamente, “quem estava contra a Guerra Colonial, e participou na revolução, não idolatra agora Zelensky” e “entre os grandes admiradores de Zelensky estão os que integram forças políticas que apoiavam aquela guerra” (referindo-se à guerra colonial perpetrada pela ditadura portuguesa).
E agora sou obrigada a falar na primeira pessoa do plural e, dando voz a muitos outros e outras que combatemos a guerra colonial e a ditadura, afirmar que, neste momento, estamos contra a guerra de agressão de Putin e admiramos a resistência corajosa dos ucranianos e de Zelensky contra uma invasão criminosa. Já agora, eu e muitos outros e outras não “idolatramos” ninguém e portanto também não Zelensky. O verbo idolatrar é, aliás, usado para achincalhar, pois somos todos adultos e aprendemos que certamente o Presidente ucraniano não será perfeito e terá falhas, como qualquer ser humano.
Da mesma forma, sabemos que os ucranianos não são perfeitos, nem os encaramos, aliás, à maneira dos nacionalistas, como uma entidade colectiva, mas como um conjunto de indivíduos diversos com comportamentos diferentes, entre os quais haverá, como entre os portugueses, minorias extremistas de direita e até neonazis. Na Rússia estes até estão no poder, veja lá! Já grandes incongruências, até onde posso saber, não tenho encontrado em Zelensky, que admiro, também por estar a arriscar a vida, ao travar com a maioria dos seus concidadãos uma corajosa luta de resistência. E coloco-me no meu lugar, de ter a sorte de ter comida no prato, não estar a arriscar a vida a cada momento e, pelo contrário, poder escrever estas linhas, comodamente instalada e em paz.
Em vez de qualificar os ucranianos como um “povo martirizado”, assim adjectivado por C.A., como se não houvesse um agressor concreto, eu prefiro caracterizá-lo como corajoso, resistente e combatente pela soberania e democracia, numa situação difícil e alvo de agressão. Acima de tudo, e sem “ironias”, pois as tragédias as dispensam, desejo a C.A. mais empatia e internacionalismo. Quanto às suas observações – falhando o alvo – sobre por que se fez o 25 de Abril, apenas posso dizer que lutei contra a ditadura e a guerra colonial, festejo sempre a data e apoio a luta de resistência dos ucranianos contra a guerra de invasão da Rússia de Putin. Esta, no momento em que escrevo, ameaça já o sudoeste da Ucrânia, a Transnístria e outro país soberano, a Moldova.