O declive da terra serve quase de escorrega para entrarmos no mundo subterrâneo. Lá fora ficou o sol de Abril, o montado florido e os sons vibrantes das aves e dos insectos. Os sentidos que se misturavam calam-se assim que passamos a fenda, deitados de costas, e entramos na galeria, com a sua atmosfera escura e silenciosa. Descoberto recentemente, este é um dos maiores abrigos do morcego-de-ferradura-mourisco (Rhinolophus mehelyi), uma das três espécies de morcegos que se encontram criticamente em perigo de extinção no território continental português. Viemos à sua procura.
Estamos numa mina abandonada no meio da Herdade da Coitadinha, perto de Barrancos, no Alentejo fronteiriço. Esquecida até há pouco tempo, a mina tornou-se notícia em Março último, quando foi anunciada a descoberta de um abrigo do Rhinolophus mehelyi. A contagem feita estimou uma população com mais de 2000 morcegos, o que faz deste local um dos mais importantes abrigos em Portugal, tornando-o central para a sua conservação.
“É a primeira vez que participo na descoberta de uma colónia desta dimensão”, relembra Tiago Marques, biólogo especialista em ecologia de morcegos que participou na contagem feita em Fevereiro deste ano. “É uma sensação muito boa, a de encontrar uma colónia tão numerosa de uma espécie ameaçada. É uma descoberta muito rara, pode acontecer uma vez na vida. É também muito bom saber que ainda há abrigos com tantos morcegos”, diz o investigador, que pertence ao Instituto Mediterrâneo para a Agricultura, Ambiente e Desenvolvimento, sediado na Universidade de Évora.
Dentro da terra, o nosso guia é Paulo Marques, arqueólogo e espeleólogo que trabalha para a Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA). A empresa comprou a Herdade da Coitadinha em 1997 como contrapartida ambiental do impacto que a albufeira causou na região. No terreno de 1000 hectares, desenvolve-se um trabalho contínuo de conservação da biodiversidade compatível com actividades agrícolas e florestais. Nesse sentido, a monitorização e protecção do abrigo agora descoberto é importante para a empresa.
Luz e escuridão
Sendo o mais experiente em matéria de espeleologia, é Paulo Marques que avança em primeiro lugar dentro da galeria. Tiago Marques, o segundo mais experiente do grupo de quatro, caminha por último. É assim que se progride nas minas, dizem-nos.
Paulo Marques foi quem fez o primeiro reconhecimento das galerias, ainda antes da pandemia, quando colegas da herdade lhe falaram da existência de uma mina abandonada. “A galeria tem poços e respiradouros. Percebi que um estava aberto, desci por ele. Foi quando dei por isto”, relata.
Na altura, o espeleólogo não conseguiu explorar a extensão total das galerias, por uma questão de segurança. Mas contou cerca de 150 morcegos e apercebeu-se, através dos sons vindos da parte inexplorada e da abundância de dejectos no chão, de que a população deveria ser maior. “A partir de dez indivíduos, um abrigo de morcego-de-ferradura-mourisco já passa a ser de importância nacional, segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF)”, adianta-nos.
Durante os últimos dois anos, a pandemia impossibilitou novas visitas ao abrigo para se realizar a contagem da população, avaliar o seu estado ao longo do ano e passar a informação ao ICNF. Não só as temporadas de confinamento obrigaram a parar todo o tipo de actividades exteriores, mas as próprias normas do ICNF de protecção aos abrigos, para evitar a hipotética transmissão do SARS-CoV-2 dos humanos para os morcegos, mantiveram estes locais vedados. “Se essa transmissão do vírus acontecer entre humanos e morcegos, podemos criar novos reservatórios do vírus”, alerta Tiago Marques. Por isso, só este ano, quando a norma foi retirada, é que a contagem pôde ser feita.
Mas a protecção dos mamíferos voadores continua a ser uma prioridade. Para podermos entrar no abrigo, foi necessário testarmos negativo para o SARS-CoV-2. E durante toda a visita o uso da máscara é obrigatório, para evitar ao máximo a possibilidade de o vírus fazer um salto entre espécies.
Sabia que...
...os morcegos insectívoros têm um papel fundamental na redução de pragas de insectos que podem atacar espécies vegetais importantes para a agricultura.
Mas, por enquanto, não há morcegos à vista. A primeira galeria prolonga-se por algumas dezenas de metros e tem uma altura suficiente para se caminhar de pé. À medida que avançamos, a luminosidade aumenta: a passagem desemboca numa sala com abertura para a superfície, por onde Paulo Marques tinha entrado na sua primeira visita.
Olhando para cima, há três ou quatro metros de rocha escavada e, depois, o azul do céu. Em baixo, o poço continua por mais alguns metros até uma superfície de água verde e opaca, cuja profundidade é uma incógnita. Paulo Marques especula que a parte submersa do poço poderá fazer conexão com um patamar mais profundo onde existem outras galerias. Na região, várias minas de cobre foram exploradas entre finais do século XIX e meados do século XX. Mas a história específica desta é um mistério.
Contornando pela esquerda a sala do poço, e depois de alguma ginástica e cuidado, entramos numa segunda galeria. O estado das paredes e do chão é um elemento importante para avaliar a segurança do lugar. “As minas são sempre mais perigosas do que as grutas. Mas se não há muito detrito no chão, não há perigo”, tinha-nos dito Paulo Marques.
Desta vez, não há qualquer nesga de luz no horizonte. As lâmpadas dos capacetes passam a ser fundamentais para ver o caminho, tomar notas e observar. A parca luz que sai delas vai iluminando as impregnações que dão cor às galerias de xisto, algumas ferrosas, outras azuladas, outras verdes, consoante os minerais expostos. À medida que caminhamos, a galeria vai-se tornando mais húmida e quente. Pisamos as primeiras poças de água no chão, protegidos pelas galochas. No tecto enrugado vão surgindo os primeiros morcegos.
Começa a contagem
O morcego-de-ferradura-mourisco é um mamífero pequeno, de pelagem castanha (embora neste abrigo se encontrem alguns indivíduos de cor vermelha). Cada animal mede entre 5,5 e 6,4 centímetros, tem uma cauda que não chega aos três centímetros, e as suas asas são amplas, o que lhe proporciona um voo manobrável, ideal para andar em torno da vegetação e da copa das árvores à caça das borboletas nocturnas, a dieta desta espécie.
Mas observados de baixo, pendurados no tecto da galeria, o que se destaca melhor é o ar felpudo e o elemento que lhes dá o nome: uma prega de pele em forma de ferradura à volta do focinho. Os vários ornamentos que estes mamíferos têm na região do focinho ajudam no processo da ecolocação.
O sentido da ecolocação nos morcegos passa pela emissão de ondas sonoras, maioritariamente ultrassons inaudíveis para os humanos que se propagam pelo espaço, batem nos objectos e voltam em forma de ecos que são captados pelos mamíferos voadores. Este sentido está tão aprimorado nos morcegos que lhes permite voar na escuridão e identificar o que está à sua volta, incluindo obstáculos, presas em movimento e eventuais predadores.
Tiago Marques vai agora na dianteira da expedição para contar os morcegos. Durante o primeiro ano de reconhecimento, após a descoberta de um novo abrigo, é necessário fazer-se este inventariado a cada estação para se compreender qual é a dinâmica do abrigo: quantas espécies alberga, em que regiões do abrigo se situam, quantas crias têm, compreender se as populações habitam o abrigo em todas as estações do ano.
Muitas vezes, os morcegos têm necessidades diferentes ao longo do ano. Na altura da reprodução, podem procurar um abrigo mais quente para ajudar na gestação das futuras crias, e, na altura da hibernação, necessitam de um local mais frio para ajudar a manter baixo o calor do corpo. Há abrigos que providenciam condições boas para as várias alturas do ano. Outros não têm essas condições e obrigam os morcegos a migrar.
A primeira contagem, feita ainda no Inverno, encontrou todos os morcegos a hibernar, o que permitiu obter um retrato mais rigoroso da colónia. A contagem actual é a da Primavera, altura em que os mamíferos saem da hibernação e se apresentam mais activos. No Verão, já é possível avaliar o número de crias.
Com a ajuda da luz do capacete que aponta para os morcegos, Tiago Marques vai dizendo os números de indivíduos que encontra. Desta vez, calhou ao jornalista apontá-los. “Trinta e dois mehelyi”, anuncia. “Isto está tudo cheio de ferro”, diz ainda. “Cinquenta e cinco mehelyi.” Ao longo da visita, o epíteto específico da espécie, “mehelyi”, vai passando a soar como a alcunha de um velho conhecido.
A poça de guano
Os morcegos vão surgindo frequentemente juntos, em cachos, preenchendo porções do tecto da galeria. Eles usam as pequenas patas para se agarrarem às reentrâncias da rocha, fazendo da suspensão um estilo de vida. Outras vezes estão isolados. Vemos um indivíduo agarrado à parede lateral da galeria com os olhos abertos, pequeninos. A cabeça começa a virar-se para ambos os lados. De repente, inicia um voo galeria adentro e perdemo-lo de vista.
Como não estão a hibernar, a nossa visita perturba os morcegos. Há cada vez mais animais a voar. Ao mesmo tempo, o trajecto fica mais acidentado. O número de poças de água e guano, o nome que se dá aos dejectos daqueles mamíferos, vão aumentando. Mais à frente, temos de gatinhar por uma passagem estreita. Nestas zonas mais apertadas, sentimos com mais frequência os morcegos a rasparem em nós. Às vezes, atrapalhados, chegam a esbarrar nos quatro humanos que importunaram o seu lar.
Apesar de a topografia da mina ainda não ter sido feita, Paulo Marques calcula que tenha menos de 200 metros de comprimento. Depois da passagem apertada, avançamos mais algumas dezenas de metros até à grande poça espessa, lamacenta, viscosa, de água e guano, que inunda o que resta da mina e também o nosso olfacto.
Foi aqui que o espeleólogo parou quando entrou pela primeira vez no abrigo. Não sabia a profundidade da poça e não queria arriscar. Na contagem de Fevereiro, descobriu-se que a maior quantidade de indivíduos hibernava justamente no fundo, depois do corredor, quando a galeria se abre numa sala um pouco maior, antes de terminar num último corredor. Mas mesmo nessa altura, não exploraram até ao fim.
Paulo Marques pede-nos para não avançarmos mais. Ele entra na poça e segue até ao final do corredor, parando aí, a alguns metros de distância. Tiago Marques vai mais à frente e desaparece. Passamos a ouvir apenas a voz dele. Ambos deixam pegadas profundas na poça de guano. Aqui, a humidade é de 94% e a temperatura de 22 graus, é a zona mais quente e húmida da mina. Esperamos, sentados, enquanto o biólogo avança os metros finais da galeria e faz a contagem dos morcegos.
“Isto agora tem aí uns 15 metros. Só tínhamos vindo até este ponto”, explica Paulo Marques, referindo-se ao lugar onde está, enquanto observa o biólogo a voltar do final da mina. “O Tiago trouxe guano até aqui”, acrescenta, apontando para a coxa da perna.
“A nossa grande dúvida era se conseguíamos atravessar isto sem ficar cá”, explica por sua vez Tiago Marques. Conseguiram. “Ciência, a quanto obrigas”, graceja ainda o biólogo, já a sair da grande poça de guano.
É hora de voltar. “Já incomodámos os morcegos por uma época”, constata Paulo Marques.
Interferir para conservar
O regresso pelas várias galerias é mais rápido. Mas paramos junto ao poço que tem contacto com a superfície. Paulo Marques continua e entra na primeira galeria. Muitos morcegos, por causa da perturbação que causámos, fugiram para aí, e o espeleólogo quer enxotá-los para que regressem para a zona mais profunda da mina, onde estão mais abrigados.
Sentados, à espera, começamos a ver os morcegos a fazerem o voo de regresso. São vários, rápidos, manchas escuras que se atravessam à nossa frente. “Já passaram uns 60, 70 morcegos”, observa Tiago Marques. Alguns não entram imediatamente na galeria. Sobem em espiral pelo poço, iluminado, até que finalmente descem e desaparecem de volta para a escuridão. “Não costumamos ver os voos dos morcegos tão bem”, diz o biólogo.
Retomamos a caminhada da última galeria até à fenda por onde entrámos. Sair por ela, também de costas, revela-se um pouco mais difícil. Mas faz-se com a ajuda de uma corda. Cá fora, somos inundados pelo sol, o céu, as árvores, as flores, os sons da natureza. E a sensação de que tudo correu bem.
Sentamo-nos para uma conversa sobre a travessia no abrigo. “É sempre uma interferência, mas de outra maneira não podemos conhecer [o que se passa]”, explica Tiago Marques. “É preciso ir avançando aos poucos, usar a luz vermelha para as fotografias, fazer pouco barulho”, reforça o biólogo. A contagem de hoje resultou em cerca de 1230 morcegos-de-ferradura-mourisco e 10 morcegos-de-peluche (Miniopterus schreibersii), a espécie cavernícola mais abundante do país, mas com pouquinhos números neste abrigo da herdade.
Comparando com a contagem feita em Fevereiro, o número de morcegos-de-ferradura-mourisco parece menor. Como já não estão em hibernação, é possível que alguns indivíduos estejam a deslocar-se para outro abrigo. As futuras visitas vão ajudar a compreender qual é a dinâmica e a real importância do abrigo.
Em Portugal, o Rhinolophus mehelyi está distribuído principalmente no Centro e Sul de Portugal continental, por grutas, abrigos e outras minas, já que é um morcego cavernícola. Mas para lá das fronteiras, a espécie espalha-se por Espanha, pelo Norte de Marrocos, Argélia e Tunísia, e habita bolsas mais distantes, ao redor do mar Mediterrâneo, no Médio Oriente e nos Balcãs.
Em termos mundiais, o estatuto de conservação deste morcego é vulnerável, um nível menos grave do que a avaliação regional feita cá. No entanto, a sua distribuição, o tamanho da população, a concentração dos indivíduos num número reduzido de abrigos e a redução da área de alimentação, dão-lhe um estatuto mais ameaçado em Portugal.
Por isso, o novo abrigo, que poderá albergar um terço da população nacional, é preciosa e precisa de ser conservada. “Se há uma perturbação na mina, podemos perder grande parte da população apenas num evento”, alerta Tiago Marques. Apesar de esta espécie viver cerca de 20 anos, as fêmeas só começam a reproduzir-se ao fim de três, quatro anos de vida e têm apenas uma cria por ano, se as condições forem boas para isso. Assim, a recuperação de uma população que sofreu uma perda grande de indivíduos demora tempo.
Futuro incerto
As populações de Rhinolophus mehelyi têm estado estáveis, segundo Tiago Marques. Mas a sua continuidade não depende só da conservação dos abrigos. “É importante conservar estas espécies de abrigo, mas o habitat que existe à volta é essencial, porque é a área de alimentação dos morcegos”, aponta Tiago Marques. “Os impactos da transformação da paisagem têm efeito. Há maneira de minimizar este efeito alterando práticas culturais ou reservando e restaurando áreas, isso são medidas de conservação.”
Por outro lado, esta e outras espécies de morcegos insectívoros contribuem para o equilíbrio da biodiversidade. “Estas espécies de morcegos, por serem insectívoras, são as melhores e as maiores controladoras de pragas que podem provocar malefícios à agricultura”, diz Paulo Marques, defendendo que estes animais podem ser aliados dos agricultores. Uma fêmea de Rhinolophus mehelyi, que pode pesar 12 gramas, consome metade do seu peso em insectos em apenas uma noite. Mil fêmeas retirarão ao fim de um mês 180 quilos de insectos do ecossistema.
Hoje, conhecem-se 27 espécies de morcegos em Portugal continental. Apesar de ser um grupo onde se investe na sua investigação, ainda há muito desconhecimento. A descoberta recente de duas espécies, o Myotis alcathoe e o Myotis crypticus, é apenas um dos aspectos do que não se sabe.
Além da perda da deterioração dos habitats, as alterações climáticas vão entrar na equação da sua conservação. Um dos possíveis impactos do aquecimento climático é levar os morcegos a saírem da hibernação mais cedo, o que pode dificultar a sua sobrevivência, se não houver alimento suficiente.
Por outro lado, há ainda o fenómeno da diminuição dos insectos, que já foi observado em países como a Alemanha, mas ainda não foi estudado com profundidade em Portugal. “Cá, talvez aconteça, talvez aconteça em menor grau, mas não está quantificada de todo”, assegura Tiago Marques, e essa é mais uma questão que pode interferir na sobrevivência dos morcegos insectívoros. “Há muitas coisas que não se sabem, a descoberta deste abrigo é uma das provas.”