“Temos de estar preparados para novas pandemias”

A redução da biodiversidade e a intensificação da actividade agro-pecuária favorecem o aparecimento de doenças infecciosas emergentes.

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A pandemia actual ajudou a comunidade científica a comunicar melhor para a existência de “uma só saúde” Manuel Roberto

A expressão “uma só saúde” foi usada pela primeira vez em 2003 num artigo publicado pelo cientista norte-americano William Karesh no jornal Washington Post. O objectivo de Karesh era alertar para a absoluta interdependência entre a saúde humana, animal e ambiental. Cuidar do planeta também é cuidar das pessoas e dos animais. Quase 20 anos depois, a abordagem integrada “baptizada” por Karesh é o caminho preconizado por várias organizações internacionais para que possamos prevenir futuras pandemias.

Estima-se que cerca de 75% de todas as doenças infecciosas emergentes em humanos são de origem zoonótica, ou seja, doenças animais que são transmitidas a pessoas. Foi assim que tanto a doença do vírus do Ébola como a síndrome respiratória aguda grave (SARS) e a do Oriente Médio (MERS) bateram à nossa porta: “saltando” da esfera dos animais para a humana. Agentes patogénicos geralmente dão este “salto” entre espécies por razões semelhantes: a devastação de habitats, a utilização de animais selvagens na alimentação humana, alteração no uso do solo, aumento da densidade populacional humana e a intensificação da actividade agro-pecuária para dar resposta à maior demanda de proteína animal.

“O desmatamento de zonas biodiversas, o consumo de espécies selvagens e a redução da biodiversidade vai trazer para junto de nós vírus que sempre existiram, mas que nunca estiveram tão perto de nós. Esta barreira de fauna e flora está a ser eliminada por um constante abate de árvores para dar espaço à agricultura e para servir este nosso modelo de alimentação muito ancorado na proteína animal. Todo este cenário está a aproximar determinados microrganismos [patológicos] do homem, temos de estar preparados para novas pandemias”, alerta Susana Paixão, professora do Instituto Politécnico de Coimbra e presidente da Federação Internacional de Saúde Ambiental.

Tudo está interligado

A redução da biodiversidade é causada não só pelo desmatamento, mas também por eventos climáticos extremos. Uma onda de calor seguida de um grande incêndio, por exemplo, pode ser responsável pelo desmantelamento de um ecossistema anteriormente diverso e equilibrado. Parte dos animais mamíferos que habitavam esses territórios afectados poderão fugir para zonas mais facilmente habitáveis (onde há água e terrenos férteis). “Nós todos tendemos a fugir de incêndios, secas e cheias, mas esquecemos que não somos só nós que fugimos, outras espécies também fogem. E, mais uma vez, isto potencia epidemias como a que estamos a enfrentar. Repito: tudo está interligado. E é o resultado de não termos investido mais na conservação da biodiversidade”, observa Susana Viegas, professora da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

As duas especialistas em saúde ambiental contactadas pelo PÚBLICO acreditam que a pandemia actual, causada pelo vírus SARS-CoV-2, ajudou a comunidade científica a comunicar melhor para a sociedade a existência de “uma só saúde”. Embora as origens precisas do novo coronavírus ainda não tenham sido estabelecidas, uma hipótese bastante provável é a de que o SARS-CoV-2 “saltou” em algum momento de um animal selvagem para os humanos – a exemplo do que, de resto, outros coronavírus fizeram ao longo dos séculos. O “salto” entre espécies não constitui uma novidade, nem é, em si, um efeito adverso das alterações climáticas. Mas as acções humanas que simultaneamente desmantelam ecossistemas e potenciam mudanças no clima, estas sim, abrem espaço para mais encontros entre pessoas e animais, aumentando o risco de consequências imprevistas e muitas vezes indesejadas.

“É preciso que as pessoas compreendam que todos estes factores [a saúde humana, animal e ambiental] andam sempre em conjunto. As alterações climáticas potenciam a perda de biodiversidade em ecossistemas, e esta perda leva, por sua vez, à migração de diferentes espécies para outros ecossistemas. O maior contacto desses animais com a população humana também nos aproxima de uma série de microrganismos que não são patogénicos para essas espécies, mas que para os humanos serão”, afirma Susana Viegas.

Além do risco de “salto” entre espécies, as alterações climáticas “podem levar a mudanças significativas na distribuição geográfica e sazonal e na propagação das doenças transmitidas por vectores”, refere a Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas (ENAAC 2020). O documento, cuja validade foi prorrogada até 2025, estabelece os objectivos e o modelo de aplicação de soluções para a adaptação de diferentes sectores às mudanças no clima. A saúde é um deles.

Dengue, Chikungunya e Zika

Os riscos mais “preocupantes” estão associados ao mosquito Aedes. Existem espécies deste tipo de insectos na Madeira (Aedes aegypti) e em Espanha (Aedes albopictus). Ambas estão associadas à transmissão dos vírus da dengue, Chikungunya e Zika. A estratégia nacional refere que, “com o aumento da temperatura” e “os efeitos expectáveis na distribuição e prevalência da doença em Portugal”, surtos ou epidemias poderão levar à sobrecarga dos serviços de saúde, sendo recomendado um trabalho de adaptação que deve ser feito “o mais cedo possível” pelas autoridades sanitárias.

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Os riscos mais “preocupantes” de doenças transmitidas por vectores estão associados ao mosquito Aedes James Gathany/Reuters

“Os insectos têm mais actividade no calor – é, aliás, por isso que as pessoas ligam o ar condicionado para afastar os insectos durante o Verão. Quanto mais calor, maior actividade dos insectos e, logo, maior risco de transmissão de vírus. Poderemos começar a ter doenças tropicais em locais que não tinham antes estes problemas. Tudo está relacionado e isto mostra-nos que não podemos trabalhar de forma compartimentada, em blocos isolados”, afirma Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero. Precisamente porque os problemas que a crise climática provoca estão interligados, a abordagem para lidar com os mesmos tem de ser, ela própria, integrada.

A abordagem holística proposta por William Karesh já está em marcha ao nível internacional. A Organização Mundial da Saúde, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial de Saúde Animal já estão a trabalhar em conjunto para definir as melhores estratégias e recomendações para prevenir futuras pandemias. Em Março de 2022, o Programa das Nações Unidas para o Ambiente juntou-se ao trio para desenhar um plano global seguindo a lógica “uma só saúde”.

“A abordagem ‘uma só saúde’ é fundamental. Muitas pessoas não conhecem a saúde ambiental enquanto disciplina porque nós trabalhamos essencialmente na prevenção. Nós tentamos que a doença nem sequer apareça. Quanto mais bem-sucedidos, mais invisíveis somos – o que não deixa de ser uma contradição”, conclui Susana Paixão.