É um ponto de viragem na forma como a guerra na Ucrânia está a ser vista no resto do mundo, e que terá consequências reais para russos e ucranianos. Falamos das graves suspeitas de crimes contra civis ucranianos desarmados na cidade de Bucha, perto de Kiev, e noutras localidades próximas da capital.
O que sabemos até agora?
- A justiça ucraniana diz que foram encontrados 410 corpos no fim-de-semana, a maioria em Bucha, depois de as forças russas terem abandonado os arredores de Kiev nos últimos dias.
- Os corpos foram encontrados nas ruas, em caves de edifícios ou enterrados em valas comuns.
- As vítimas seriam quase todas civis: não tinham uniformes militares.
- A maioria aparenta ter sido executada a tiro.
- Algumas tinham as mãos atadas atrás das costas.
- Os sinais de decomposição dos corpos, apesar das baixas temperaturas, indiciam que as vítimas foram mortas durante a ocupação russa, e antes de as forças ucranianas terem reconquistado aquela zona.
O que ainda falta saber?
As circunstâncias exactas do que aconteceu: em que momento as vítimas foram mortas, como, por quem e a mando de quem. Para já, o que há são corpos, indícios de mortes violentas e as circunstâncias que colocam as forças russas como o principal suspeito.
O que diz a Rússia?
Moscovo nega qualquer responsabilidade e diz que as imagens de corpos nas ruas de Bucha são “falsas”, segundo o porta-voz do Kremlin, Dimitri Peskov. No entanto, há várias testemunhas da descoberta dos corpos – não só elementos das autoridades ucranianas, como jornalistas da Associated Press, da Reuters ou da BBC, entre outros meios internacionais.
O que diz a Ucrânia?
Que o que aconteceu em Bucha “são crimes de guerra e vão ser reconhecidos pelo mundo como genocídio”, como disse esta segunda-feira o Presidente ucraniano Volodimir Zelenskii. E que não há dúvidas quanto à autoria russa dos crimes.
Mas o que são crimes de guerra?
Parece estranho falar de leis e crimes quando se fala em guerra, mas até numa guerra existem regras. As Convenções de Genebra, um conjunto de tratados assinados por praticamente todos os países, definem protecções para civis e prisioneiros de guerra, sendo que a Quarta Convenção de Genebra lista o que são crimes de guerra:
- Assassínio intencional
- Tortura ou tratamento desumano
- Grande sofrimento ou lesões graves ao corpo e à saúde causadas de forma intencional
- Destruição extensa e apropriação de propriedade não justificada por necessidade militar
- Tomada de reféns
- Deportação ou confinamento ilegal
Há ainda o Protocolo de Genebra, que é outro tratado à parte, e que proíbe o uso de armas químicas e biológicas durante uma guerra. Ou seja, não vale mesmo tudo.
E o que é genocídio?
É o mais grave crime de que um Estado ou indivíduo pode ser acusado, e está definido em termos bastante exactos pela Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948 como qualquer um dos seguintes actos “com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”:
- Assassinato de membros do grupo
- Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo
- Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial
- Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo
- Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo
A mesma convenção determina que não é apenas o genocídio que é punido, como também a tentativa de o cometer, o seu incitamento ou a cumplicidade nos crimes.
O exemplo histórico mais conhecido de um genocídio são os crimes cometidos contra judeus durante o Holocausto pela Alemanha Nazi e os seus aliados, que fizeram milhões de mortes e quase extinguiram o povo judeu na Europa.
Existem outros acontecimentos qualificados como genocídio por alguns países, mas não reconhecidos por outros: é o caso do massacre de arménios pelo Império Otomano, entre 1915 e 1917, e o Holodomor, em que milhões de ucranianos morreram de fome na União Soviética. Em Portugal, a Assembleia da República aprovou votos de condenação dos dois acontecimentos.
Mas quem investiga e julga crimes de guerra e genocídio?
Há vários caminhos possíveis, como explica aqui a Sofia Lorena. O primeiro é através do Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia, nos Países Baixos. Este tribunal é independente das Nações Unidas, mas nasceu do Estatuto de Roma, um tratado que foi negociado no âmbito das Nações Unidas. Os juízes tanto podem eles próprios iniciar uma investigação (e isso vai acontecer), como podem receber um pedido de investigação da parte de outro país (no caso da Ucrânia, a Lituânia já pediu ao TPI para investigar possíveis crimes de guerra cometidos pela Rússia e também pela Bielorrússia).
O problema é que o TPI não é um tribunal reconhecido por todos os países, incluindo pelos Estados Unidos, a China e a Rússia (a Ucrânia também não é membro do TPI, mas aprovou em 2014 uma declaração que lhe dá jurisdição no seu território). Para o Presidente russo Vladimir Putin ser julgado pelo TPI (que não julga Estados, apenas indivíduos, e Putin seria possivelmente responsabilizado por estar no topo da cadeia do poder russo), teria de ser detido num país que reconhecesse o tribunal. Mas é pouco provável que o líder russo visite um território onde suspeite que possa ser alvo de um mandado de captura.
O segundo caminho passa pelas Nações Unidas, que podem decidir criar um tribunal internacional para julgar os crimes relacionados com uma guerra específica. Foi o que aconteceu em relação à antiga Jugoslávia e ao Ruanda. No entanto, estes tribunais especiais têm de ser criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde a Rússia tem poder de veto, pelo que seria natural que Moscovo bloqueasse essa decisão.
Uma terceira via passa por um conjunto de países constituir um tribunal, como aconteceu em Nuremberga, em relação à Alemanha Nazi.
Por fim, há países cujo sistema de justiça considera ter jurisdição universal para certos crimes de guerra ou contra a humanidade. É o caso da Alemanha, que já estará a investigar suspeitas contra Putin. Mas, mais uma vez, é pouco provável que o Presidente russo viaje para a Alemanha e se coloque numa situação que o leve a ser detido e apresentado a um tribunal.
Em qualquer um destes casos, a investigação ficaria a cargo dos respectivos tribunais, organizações e países.
O que pode acontecer então?
Há vários países e organizações a exigir uma investigação ao que aconteceu em Bucha. O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, diz que “temos de reunir todos os elementos para que possa haver um julgamento por crimes de guerra”, a Comissão Europeia também fala em “crimes de guerra”, e a Polónia fala mesmo em “genocídio”.
Mesmo que não se avance para um julgamento (só a investigação duraria vários anos), a onda de condenação que está a crescer a nível internacional abre terreno para mais sanções económicas e diplomáticas contra a Rússia, que pode ficar ainda mais isolada.
Ao mesmo tempo, os graves acontecimentos de Bucha vêm dificultar um possível acordo entre russos e ucranianos, numa altura em que os russos retiravam da região de Kiev (consolidando antes as suas posições no Sul e no Leste da Ucrânia) e em que parecia possível um cessar-fogo. Agora, regressamos a momentos de grande incerteza.
Na próxima segunda-feira voltamos a fazer um resumo descomplicado do que de mais importante se passou durante a semana. Até lá, vale a pena espreitar as leituras recomendadas no final desta newsletter e assistir ao vídeo do PQ desta semana: explicamos o que são erupções vulcânicas e por que acontecem. Ajuda a perceber melhor o que poderá estar a passar-se em São Jorge, nos Açores.
Boa semana.