Cuidados paliativos apenas para doentes terminais? E para a minha mãe?
Muitas pessoas pensam que os Serviços de Cuidados Paliativos só acompanham doentes que vão morrer nos próximos dias ou semanas. Dói-me dizer que essa ideia errada existe, porque é isso que acontece na maior parte dos casos.
A minha mãe tem 58 anos e tem cancro metastizado. Fez quimioterapia, uma cirurgia programada, uma colostomia de urgência, radioterapia e de novo quimioterapia. Foram quase dois anos de tratamentos. Após três meses de pausa (entre Outubro e Janeiro), uma TAC de reavaliação mostrou envolvimento de gânglios pela doença. Vai recomeçar a fazer quimioterapia em breve. Durante todo este tempo, ela nunca teve uma consulta de Cuidados Paliativos. Gostava muito que ela tivesse começado a ser seguida desde o início, em 2019. Podem perguntar: como assim? Devia ser seguida pelos Cuidados Paliativos durante anos? Então os paliativos não são só para quem está a morrer? Não. Essa ideia é errada, apesar de ser o que acontece na prática em Portugal, infelizmente.
Todos sentimos que temos muito tempo pela frente. Que vamos ter tempo de realizar os nossos sonhos, talvez não os mais ousados, como ser astronauta, dar a volta ao mundo ou aprender a tocar piano, mas os sonhos ou desejos simples, de ir a praia, comer um prato especial no restaurante favorito ou, no meu caso, ir à piscina municipal de Valongo com as minhas filhas. Mas esse tempo terá um fim, e será sempre demasiado cedo. Convém termos isso presente, sobretudo quando recebemos o diagnóstico de uma doença potencialmente fatal. É aqui que os cuidados paliativos têm um papel: ajudar os doentes a viverem o melhor possível após serem confrontados com a sua mortalidade.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, os cuidados paliativos são “uma abordagem para aumentar a qualidade de vida das pessoas com doenças com risco de vida e dos seus familiares, através da prevenção e alívio de sofrimento pela identificação precoce e tratamento da dor e dos problemas físicos, psicossociais e espirituais.” Existem outras definições, algumas das quais não restringem os cuidados paliativos a doenças com risco de vida, mas incluem também doenças crónicas com sofrimento ou stress significativo, como a doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC), insuficiência cardíaca congestiva ou Alzheimer. Os médicos especialistas em Cuidados Paliativos têm como objectivo maximizar a qualidade de vida dos doentes, familiares e cuidadores, e devem começar o seu trabalho o mais cedo possível. Aliviar a dor, ansiedade, falta de ar, enjoos, dificuldade em dormir, falta de apetite ou sintomas depressivos... Não é algo que deva ser adiado para as últimas semanas de vida. É algo que queremos que seja feito o quanto antes!
Muitas pessoas pensam que os Serviços de Cuidados Paliativos só acompanham doentes que vão morrer nos próximos dias ou semanas. Dói-me dizer que essa ideia errada existe porque é isso que acontece na maior parte dos casos. Mesmo o IPO do Porto, o hospital onde trabalho e do qual muito me orgulho, tem um Serviço de Cuidados Paliativos com apenas sete médicos especialistas. Apesar de estes médicos, com muita dedicação, acompanharem imensos doentes, uma equipa de sete elementos não pode acompanhar as centenas de doentes que diariamente entram no IPO! Por uma questão de gestão dos recursos, os doentes só podem ser referenciados para o Serviço de Cuidados Paliativos depois de pararem qualquer tratamento de quimioterapia, mesmo que seja paliativa. Isso não é o ideal, é o possível com os recursos actuais. O ideal seria todos os doentes com o diagnóstico de cancro terem pelo menos uma consulta de Cuidados Paliativos: as pessoas sem sintomas significativos, com boa aceitação do seu diagnóstico, não precisariam de seguimento; para as outras, marcar-se-iam outras consultas, para continuarem a abordagem paliativa enquanto se fazem estudos e tratamentos, mesmo com intuito curativo.
Um estudo revolucionário, publicado na revista New England Journal of Medicine em 2010, mostrou que doentes com um tipo específico de cancro do pulmão que iniciaram seguimento precoce por Cuidados Paliativos, juntamente com o tratamento dirigido ao cancro, viveram mais tempo do que os doentes que receberam apenas tratamento dirigido à doença. Este artigo, com milhares de citações, mudou completamente a visão dos cuidados paliativos. Mais estudos são necessários para verificar se obtemos resultados semelhantes noutros contextos, mas é possível que ao aumentar a qualidade de vida dos doentes oncológicos haja um efeito positivo na sua sobrevivência. Ou seja: os doentes com acompanhamento precoce por cuidados paliativos não irão só viver melhor, como também podem viver mais tempo!
À minha vontade de ver a minha mãe seguida não só pela Oncologia Médica mas também por Cuidados Paliativos, impõem-se quatro questões:
- Primeira: o que prefere a minha mãe? Esta é a pergunta mais importante. Como filha, eu quero o melhor para ela. Como médica, sei que a maioria dos estudos apontam para beneficios na abordagem precoce por Cuidados Paliativos. Mas acima de tudo isto, está a preferência da minha mãe. Os seus sentimentos. E receio que as ideias generalizadas sobre cuidados paliativos tenham um impacto negativo sobre esses sentimentos.
- Segunda: o que acham os médicos que a seguem atualmente deste acompanhamento simultâneo pelos Cuidados Paliativos? Acredito que pensem como eu, e vejam nessa opção uma mais-valia. Mas certamente há argumentos contra, e isso leva-me à pergunta seguinte.
- Terceira: como articular as recomendações da Oncologia e dos Cuidados Paliativos em caso de discordância? Quando médicos com opiniões diferentes trabalham na mesma instituição, é relativamente fácil, pois podem reunir-se e discutir até chegarem a um consenso. Estando em instituições diferentes, muitas vezes são os doentes e familiares que comunicam as discrepâncias nas recomendações, gerando desconforto a todos os intervenientes (doente, familiares e profissionais).
- Quarta: valerá a pena o custo financeiro? Para mim, sim. Se a minha mãe quiser, farei os possíveis para que comece a ser seguida por Cuidados Paliativos o quanto antes, esperando que ela responda à quimioterapia que ainda vai começar, e que seja seguida durante muitos anos.
Espero que estas questões, tão profundas quanto íntimas, ajudem outros doentes, familiares, profissionais de saúde e decisores políticos a refletir sobre como melhorar a realidade dos cuidados paliativos em Portugal. Cabe-nos a todos fazê-lo.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico