Se este texto contém “masculinidade tóxica”, peço desculpa
Aviso à navegação: neste texto, “José” é o nome alterado de um vulto da cultura portuguesa falecido há não muito tempo, dos raros que procuravam, a todo o custo, escrever com riqueza vocabular, beleza, eufonia e erudição.
Há estudos que dizem que nunca se escreveu tanto como agora. Hoje, quase todos escrevem nas redes sociais, por sms, por correio electrónico. Claro está, nem tudo são rosas: o imediatismo nas respostas; a escrita de jorro; a ausência de revisão; o excesso de mensagens de coisíssima nenhuma; a pletora de emojis e de abreviaturas; a quantidade de capas a substituir quês e us; a porcaria da “escrita esperta” que altera as palavras que queremos escrever para outras que não queremos, de forma alguma!, escrever; a impressionante oscilografia que o Monstruoso Acordo (MA) instalou, com consequências terríveis para os olhos e para os ouvidos — sim, para os ouvidos. Recentemente, ouvimos “impato”.
(Não, isto não tem nada que ver com o MA, contraporão os empedernidos. Nadinha. Ainda terão lata para tal dislate?)
Todos estes factores não contribuem para a valorização do acto de escrever. Para a sua solenidade, até.
Um artigo da Folha de S. Paulo, de Otávio Pinheiro, de 16 de Julho de 2018, garante que “[n]unca se escreveu tanto, tão errado e se interpretou tão mal”, frisando que apenas 22 % dos Brasileiros que chegaram à universidade têm “plena condição” de “compreender e se expressar”.
Um artigo no Expresso, de Isabel Leiria e Joana Pereira Bastos, de 4 de Março de 2022, com o elucidativo título “Como o digital está a moldar a linguagem”, corrobora o que ouvi de três mães e de uma professora:
“No 1.º Ciclo, por exemplo, isso é cada vez mais comum [omissão de verbos e artigos] “Professora, posso casa de banho? Ou “mãe, posso gelado” são exemplos de construções frásicas que parecem estar a tornar-se moda”, assegura Filomena Viegas da Associação de Professores de Português, que garante ainda haver eliminação de pontuação, de maiúsculas. “[U]m empobrecimento da fraseologia. Escrita e oral”, resume Filomena Viegas.
Na crónica “Palavras soltas”, do jornal Público, de 1 de Junho de 2007, Vasco Pulido Valente afirma:
“A linguagem pública (religiosa, política, jornalística, musical, literária, cinematográfica, universitária) empobrece dia a dia. A conversa, como arte, morreu, porque as pessoas não têm que dizer e muito pouco interesse em ouvir.”
E dá o exemplo da escrita de cartas:
“Quem viveu na época em que se escrevia (cartas, por exemplo) aprendeu que escrever é um exercício de investigação e de lógica; um exercício que obriga a definir, ordenar e desenvolver o que se pensa. E também uma tentativa para comover, convencer, informar ou instruir o próximo. A espécie de comunicação pessoal e colectiva que hoje se usa dispensa esse esforço.”
Bem, falemos da singularidade do José.
Consoante o receptor e o contexto, há quem termine as mensagens de telemóvel e de correio electrónico, e as cartas (aceitemos a ideia de “carta electrónica” quando a extensão e a estrutura é similar à de uma carta) com “beijinho”, “beijinhos”, “abraço”, “abraços”, “beijo”, “beijos”, “forte abraço”, “fraterno abraço”, “melhor abraço”, “grande abraço”, “saudoso abraço”, por vezes seguidos de ponto(s) de exclamação. O José não usava estas palavras, possuía uma marca só sua.
Aparte: Tinha um amigo que, quando recebia mensagens femininas, interpretava e reinterpretava obsessivamente as entrelinhas das mensagens, pedindo a opinião dos amigos mais próximos. Três linhas de uma mulher que o interessava obrigavam a meia hora de dissecação da mensagem, especialmente da última inscrição. Impulsivo e hiperanalítico, saltava logo para o fim da carta. Se era “beijinhos”, ficava deprimido. Se era “beijo”, todo ele era euforia e glória. Para o meu amigo, “beijinhos” ou “bjs” eram sinal de desprezo. O beijinho, no singular, era um degrau acima. A forma abreviada (“bj”) era um manifesto de desinteresse. “Beijos” era ambíguo, mas mais quente do que os “beijinhos” e o “beijinho”. “Bjs”, porém, não lhe dava esperança. Na sua cabeça, “bj” e “bjs” eram escritos a despachar. O “beijo” é que era.
Há quem use advérbios de modo: “atenciosamente” e “respeitosamente” serão os mais frequentes. O José não se despedia assim.
Há quem use “cumprimentos” ou “melhores cumprimentos”. O José não.
Há quem recorra às saudações, acrescentando-lhes, por vezes, um adjectivo, como “calorosas”. “Saudações patrióticas”, escreveu-me certa vez um militar. Também não era o caso do José.
Há quem use fórmulas pouco comuns: “abraço quebra-costelas”, “aquele abraço”, “abraço dos verdadeiros”, “saúde e sorte”. (Também não era assim que o José findava as suas mensagens.) Há de tudo, e este é mais um terreno para infinitas criações.
Há quem termine com votos de isto, aquilo e aqueloutro. (E há quem “deseje votos”.) O José não.
Conheço quem nunca escreva, antes de assinar, nada senão: “Obrigado.” Mais nada. Sempre. Alguma espécie de pudor, comenta quem o conhece. Mas o José tinha uma fórmula só sua.
Educado, culto, sensível, homem das belas-letras, o José, por paradoxal que possa parecer, escrevia sempre no final das cartas e mensagens: “Força na verga!”
Nunca cheguei a saber se era metafórico ou literal. Ou as duas coisas. Tão-pouco cheguei a saber se enviava essas três palavras a pessoas do género feminino. Garantiram-me, faz poucos meses, que os filhos mantêm (felizmente!) a tradição do pai.
A sobredosagem mediática (ou a distopia mediática) do medo e da incerteza em quase dois anos de pandemia e de endemia, os números, os números, os números, a incerteza, os confinamentos, as restrições, a profusão de regras que já ninguém conseguia acompanhar ou perceber, os incessantes especialistas a toda a hora; a subsequente sobredosagem mediática da guerra, do sofrimento, do horror, do horror (olá, Conrad); tudo isso desaguou numa desvitalização generalizada; de modo que as três palavras do José me parecem um bom tónico, um robustecimento do sistema imunitário.
E está na altura de terminar este texto.
Força na verga!