Quantos doentes morreram nestas semanas na Ucrânia por falta de hemodiálise?
Proponho que cada um dos cerca de cem centros de hemodiálise de Portugal se comprometa voluntariamente a receber um doente ucraniano de forma gratuita, sem encagos para o Governo português.
Permitam-me uma breve reflexão como médico nefrologista. A Ucrânia tem cerca de 12 mil doentes em hemodiálise, número aproximadamente igual ao que existe em Portugal, espalhados por um país de dimensão parecida à da Alemanha e Itália juntas. Chegar às fronteiras de países amigos, sob bombardeamentos indiscriminados e sem respeitar corredores humanitários é certamente uma tarefa difícil e demorada, muitas vezes de vários dias. É bem sabido que os doentes em hemodiálise crónica fazem tratamento em dias alternos e dificilmente sobrevivem a 3-4 dias seguidos sem tratamento. Muitos dos hospitais e centros de hemodiálise onde eram habitualmente tratados têm sido bombardeados e destruídos ou encontram-se sem água, sem electricidade ou sem receber os equipamentos necessários para prosseguir os tratamentos.
Sendo assim, estes doentes não têm alternativa. Ou permanecem onde estão e não têm condições para serem tratados ou arriscam uma viagem que podem não alcançar em tempo útil.
Mas o problema é ainda mais complicado. Grandes desastres naturais como terremotos e consequentes esmagamentos e traumatismos vários ou desastres provocados pelo homem como as guerras produzem situações de insuficiência renal aguda que requerem igualmente tratamento urgente de hemodiálise. Esta combinação acumulada de doentes crónicos e agudos desborda completamente as capacidades existentes, já por si progressivamente diminuídas pela destruição provocada pela guerra.
Por último existem ainda os doentes transplantados renais que requerem medicamentos muito específicos para controlar os mecanismos de possível rejeição do rim transplantado sem os quais o órgão poderá deixar de funcionar. Se isso acontecer o doente só sobreviverá voltando à hemodiálise. Neste momento, vão-se acabando os stocks destes e outros medicamentos e custa-me imaginar as situações de angústia e sofrimento dos doentes e seus familiares, assim como dos médicos responsáveis pelos mesmos.
Há naturalmente muitas outras situações clínicas, pensemos simplesmente em doentes oncológicos e tratamentos de quimioterapia, que estão neste momento totalmente comprometidas por falta de medicamentos.
Esta é uma outra face oculta da guerra que as televisões não comentam. Não tem as imagens cinéfilas dos edifícios destruídos pelos bombardeamentos e não se acompanha das intermináveis discussões técnicas sobre os diferentes tipos de bombas, mísseis e coisas parecidas. Mas é, podem crer, real, muito real.
Termino, dizendo que contactei com um colega nefrologista e velho amigo polaco. Fiquei mais aliviado. A Polónia está a receber e a tratar todos os doentes ucranianos que conseguem alcançar a fronteira e necessitam hemodiálise ou cuidados pós-transplantação renal num esforço admirável de humanismo. Que será feito de todos aqueles que não chegam à fronteira?
Não, não posso e não devo terminar sem uma mensagem de esperança. Proponho que cada um dos aproximadamente cem centros de hemodiálise existentes em Portugal se comprometa voluntariamente a receber um, apenas um ucraniano em hemodiálise de forma gratuita, sem encagos para o Governo português, que se comprometa a organizar a sua vinda para Portugal em segurança. Parece-me fácil e possível e, tenho a certeza, todos e cada um dos nefrologistas Portugueses teremos muito gosto em recebê-los e tratá-los com todo o carinho que só os médicos sabemos dar a quem precisa. Peço e suplico a quem ler esta carta e conheça algum membro do Governo lhe faça chegar esta ideia.