Francis Kéré a lembrar a função social da arquitectura
Francis Kéré concebeu a escola da sua aldeia, conseguiu financiamento e acompanhou uma obra que hoje enriquece a comunidade. A construção daquela escola não foi um caderno de encargos, mas a promessa de um futuro melhor em que arquitectos de todo o mundo, também de África, poderão ter a sua voz.
O primeiro prémio Prizker em África, para muitos, não terá sido uma surpresa. Diébédo Francis Kéré tinha já um currículo exemplar, depois de ter desenhado pavilhões na londrina Serpentine Gallery e nos Jogos Olímpicos de Pequim. Cada um destes projectos fá-lo-ia brilhar no hall of fame com outros starchitects, e seria um indício de que o mais mediático prémio de arquitectura do mundo estaria para breve.
Este reconhecimento chegou e já fez história, num prémio que se quer abrir ao mundo. Só em 2004, na 26.ª edição, isto é, 25 arquitectos depois, seria reconhecido o trabalho da primeira mulher, Zaha Hadid. Hoje seria absurdo questionar a decisão, porque o processo criativo da arquitecta iraquiana revolucionou técnicas de construção, entre referências à pintura de Malevich e a fluidez dos seus edifícios. Não se trata apenas de dar visibilidade a quem tem menos representação no mundo da arquitectura; trata-se, sim, de reconhecer um legado, onde quer que esteja, que tenha contribuído para o desenvolvimento da sociedade.
Os últimos anos de Pritzker têm revelado maior pendor social. É o exemplo do trabalho de Alejandro Aravena, premiado em 2016, hoje membro do júri. A habitação social que desenhou no Chile pode ser ampliada e acolher espaços auto-construídos, que evoluem com as famílias, sem comprometer a coesão dos espaços. Também o trabalho de Lacaton e Vassal, premiados em 2021, é sobre a requalificação da habitação social, salvando-a da demolição.
Yvonne Farrell e Shelley McNamara, premiadas em 2020, dedicaram-se essencialmente em edifícios de ensino, desenvolvendo narrativas que enriquecem o espaço público, e Francis Kéré notabilizou-se na construção de escolas. A história do último vencedor do prémio é um exemplo de resiliência, num contexto de grande escassez material, e facilmente comove colegas de todo o mundo. Francis Kéré cresceu no Burkina Faso e viveu uma infância difícil, entre os 40 quilómetros que separavam a sua aldeia da escola mais próxima. Tendo estudado arquitectura em Berlim, tratou de conceber uma escola para a sua aldeia, e regressou com o projecto. Hoje, as crianças de Gando têm uma escola onde estudar, mas não é uma escola qualquer.
A generalidade das escolas daquele país, em betão, é pouco ventilada, tem pouca luz natural e dificulta a concentração dos alunos quando as temperaturas ultrapassam os 45 graus. Francis Keré sentira esse ambiente opressivo e tentou melhorar a vida dos alunos que o sucederam. Tratou de recolher donativos em Schulbausteine für Gando, isto é, tijolos para Gando. De facto, o barro é abundante na região e as técnicas de construção foram adaptadas para garantir a solidez estrutural do edifício. O que se vê, além do ritmo da fachada, é a recolocação de elementos construtivos que são comuns na região, e que também são conhecidos pelos construtores locais. A cobertura, em chapa de metal ondulada, foi afastada do tecto perfurado, fazendo sair o ar quente. Mas o afastamento, mais do que prático, parece ser simbólico, como se o arquitecto também quisesse fazer afastar das gerações futuras o ambiente opressivo das antigas escolas. E, ao fazê-lo, é como se a cobertura planasse sobre a paisagem.
Comum a vários trabalhos de Francis Keré, é uma ideia de comunidade. São estruturas que acolhem, que recebem cada um, na sua singularidade. Em contextos diferentes, há também uma recodificação dos elementos naturais, designadamente, da árvore, em Coachella Valley, com os seus baobás, estruturas de várias cores que são como troncos de grandes árvores, abrigos de frescura, ou a delicada copa de árvore que recriou no museu de Louisiana, Dinamarca, com elementos de madeira vertical a projectar uma sombra tão subtil, como folhas ao sol.
Vários edifícios de ensino seriam concebidas por Francis Keré, melhorando a vida de futuros alunos, que certamente irão habitar a sua história, projectando-a nas futuras gerações. O exemplo que chega da aldeia de Gando mostra como a arquitectura ainda pode ter uma função social. Respondendo aos problemas actuais, das assimetrias globais ao crescente individualismo, e num mundo em tão rápida mudança, a arquitectura nunca foi tão necessária.
Francis Kéré concebeu a escola da sua aldeia, conseguiu financiamento e acompanhou uma obra que hoje enriquece a comunidade. A construção daquela escola não foi um caderno de encargos, mas a promessa de um futuro melhor. Um futuro em que arquitectos de todo o mundo, também de África, poderão ter a sua voz, nas universidades, em conferências, nas bienais e trienais, onde quer que seja. Uma certeza permanece: o futuro da humanidade será cada vez mais partilhado. Só os prémios e as instituições que o perceberem farão parte desse futuro.