A criminosa invasão da Ucrânia: e agora, que fazer?

Nesse sentido chego a estar de acordo com o meu colega Boaventura de Sousa Santos, tanto quanto estou contra as suas interpretações. A única forma de terminar depressa com o conflito será através de conversações que envolvam também EUA, UE, NATO e ONU, que em certas ocasiões parece para nada servir.


1. É preciso ser claro: a invasão da Ucrânia pela Rússia não tem justificação, por mais razões que sejam invocadas e por mais acusações que se façam ao imperialismo americano e críticas (agora fora de tempo) que sejam dirigidas à UE e à NATO. A Ucrânia é um país europeu independente que tem o direito de definir os seus próprios caminhos e a democracia plena é sempre um objectivo difícil de alcançar. A possível destruição de Kiev é uma dor que me aperta o coração. Visitá-la, em Junho de 1988, vindo de Talin, onde assisti aos primeiros movimentos neo-independentistas da Estónia, e em direcção a Moscovo, numa memorável viagem de comboio, é algo que não se pode esquecer, pois a Ucrânia, em tempo de perestroika, respirava já um ar de vida ocidental que não era visível em Leninegrado ou na capital da então URSS, ainda que aqui tivesse assistido a discursos inflamados que surgiram no tempo de glasnost.

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Mariuopol, Ucrânia UKRAINE MILITARY/Reuters

Como historiador, não me quero pronunciar com argumentos opinativos, como tantos o têm feito, uns com investigação realizada, outros como simples fazedores (produtores ou mesmo reprodutores) de opinião, numa altura em que cada um acha ter o dever de apresentar a sua interpretação do que se está a passar. A História precisa de um natural afastamento no tempo para poder ser feita e a chamada “história do tempo presente” é realizada por jornalistas, uns que conhecem ou conheceram o objecto de análise e os seus documentos, outros que se limitam a relatar o que se passa (e que é verdadeiramente dramático). O que posso apresentar é uma simples reflexão cheia de dúvidas e de sentimentos dolorosos, própria de quem já teve uma vida longa e difícil, quem conheceu o que é uma guerra, uma revolução e lutas no seio da Universidade que hoje se aproxima, perigosamente, como tudo no mundo, de uma lógica empresarial.

2. Poucos conheceram um movimento que, em Outubro de 1988, partiu de Paris e de Florença, chamado “Movimento da Europa Cultural”, efémero como todos os movimentos idealistas e espontâneos que tiveram a cultura universitária como raiz. Ali discutia-se a realidade europeia, burocrática e economicista da CE a caminho da UE, criticando a pouca atenção concedida aos interesses dos povos e fazendo apelo a um contínuo e expressivo debate, sempre numa lógica de interrogação. No fundo, o que se desejava é que os valores culturais europeus se estendessem a toda a Europa geográfica, sem qualquer exclusão e sem qualquer discurso mistificador, este regido sempre pelas leis de mercado, mas também não esquecendo as identidades nacionais e regionais.

Na verdade, não poderia ir longe um tal manifesto, mesmo que as ideias europeístas se viessem a encher de esperança com a queda dos muros, sobretudo do muro de Berlim, que, felizmente, já não conheci inteiro numa viagem de trabalho à Alemanha em Setembro de 1991. Se, na verdade, os quatro encontros com historiadores soviéticos me levaram a conhecer os cânones interpretativos de um socialismo não democrático, que imprimiam à História, como conhecimento, uma via única de análise, a lógica capitalista e neoliberal, que justificará agora o conceito pleonástico da “democracia liberal” — a democracia tem sempre de supor a liberdade —, traz ao de cimo falsas ideias de “liberdade” que, pela falta de rigor, se transformam em meras opiniões.

3. Voltemos à invasão criminosa da Ucrânia. Esta é feita pela Rússia não europeia com justificação em argumentos que, por vezes, nos fazem lembrar a invasão nazi e depois soviética da Checoslováquia, da Polónia, da Hungria… Desta vez, é em nome da liberdade das novas repúblicas e contra a nazificação do Estado ucraniano! E claro contra os Estados Unidos, contra a NATO e contra a União Europeia. Mas o mais interessante, ou desinteressante, é que este discurso acaba por contagiar um vasto leque de consciências opinativas, nalguns casos por influência dos novos autoritarismos, noutros pelo anti-americanismo sistémico, como se o imperialismo americano tivesse necessariamente de suscitar o dever de posicionamento de uma certa esquerda.

Noutros casos — lamento dizê-lo — é como se verificasse um apelo da Rússia, espécie de mãe de todos os sistemas ditos “comunistas”, desde a China e a Coreia do Norte à Venezuela e a Cuba, mesmo que ela seja comandada por Putin, que, depois da sua carreira no KGB, surgiu como chefe de Estado autoritário e oligárquico da Federação Russa. Deste modo, esquece-se ou subalterniza-se o que afinal é a essência de todas as guerras, ou seja, a morte de crianças, de mulheres e de homens, e a destruição das cidades e dos campos, das escolas, dos hospitais e dos monumentos, que fez afinal com que haja um movimento de solidariedade europeu, e mesmo para além da Europa, cujo significado e valor até se quer diminuir, confrontando-a com a falta de solidariedade em relação às também abomináveis consequências das várias guerras no mundo, que afinal vieram originar tantos refugiados.

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Bombardeamento de escola, em Mariupol, Ucrânia UKRAINE MILITARY/Reuters

4. Mas, depois desta interpretação sentimental, que não refere, de forma assumida, factos e fontes, que se citam constantemente mas que não são analisadas de forma aprofundada e que até são entendidas muitas vezes de forma contraditória, “a gosto do cliente”, perguntar-se-á: que fazer?

Nesse sentido chego a estar de acordo com o meu colega Boaventura de Sousa Santos, tanto como estou contra as suas interpretações acerca do que sucedeu e contra as suas críticas sistémicas e fora de horas. A única forma de terminar depressa com este conflito será, talvez, a das conversações com a Rússia de Putin (por mais autocrático e cruel que se possa considerar tal personagem de opereta), com a participação da Ucrânia, evidentemente, mas também dos EUA, da UE, da NATO e, se internacionalmente possível, da ONU, que em certas ocasiões de conflito parece para nada servir. O que é preciso é acabar com esta guerra, assim como com todas as outras guerras, que criaram neste tempo uma onda de migrações nunca vista. Mas será isso possível? O homem tem sempre fome de poder. Daí que se arrastem para a guerra nações inteiras, sendo outras vítimas desse desejo de domínio. Tal sempre se revelou assim, ao longo do tempo, num processo histórico em espiral. Neste tempo de angústia, que se sucede a uma pandemia, é pelo menos reconfortante viver com a Utopia.

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