Para que serve um especialista em política internacional?

A forma cínica e cruel como Atenas tratou a ilha revoltosa de Melos é arrepiante na semelhança com o que Putin está a fazer à Ucrânia. Esparta vira a brutalidade ateniense a seu favor, incentivando várias cidades-estado importantes a juntar-se à sua causa. Tal como os atenienses, Putin descobriu que a percepção de moralidade e de justiça das acções dos Estados pode ser decisiva.


Não parece haver analista de política internacional que não se confesse surpreendido com os acontecimentos dos últimos dias. Não sabemos que desfecho terá a invasão russa da Ucrânia, mas as ondas de choque foram tão fortes que já assistimos a mais mudanças históricas na política internacional do que se pode contar pelos dedos de duas mãos. Compreende-se que surja agora a pergunta: “afinal para que servem os analistas, se não previram que isto fosse acontecer?”

As comunidades académicas das disciplinas de Relações Internacionais (RI), Estudos de Segurança e Geopolítica debatem há muito os assuntos que hoje enchem os ecrãs e os jornais. A palavra-chave aqui é “debate”: como se tornou evidente ao longo da pandemia, nem as ciências naturais falam a uma só voz. Os especialistas em saúde pública deram conselhos contraditórios aos responsáveis políticos, e foi a estes que coube a responsabilidade de decidir. O que interessa é que os conselhos estejam bem argumentados e apoiados num sólido trabalho analítico. O mesmo se passa em relação à política internacional.

Tanto a ousadia de Putin como a forte reposta da sociedade civil e de muitos governos desafiam algumas ideias centrais que estão em voga na disciplina das RI. Contra algumas tendências teóricas reducionistas, as últimas semanas deixaram evidente a irredutível complexidade do fenómeno internacional. Para lidar com essa complexidade, são essenciais ao analista duas características.

A primeira é a humildade analítica. A velocidade das mudanças dos últimos dias convida à cautela nas previsões. Quando se diz que “Putin não vai arriscar uma invasão total da Ucrânia” e no dia seguinte acontece precisamente isso, fica clara a necessidade de abandonar previsões assertivas em favor de termos do campo lexical da incerteza como “talvez”, “tendência”, “probabilidade”, “riscos” e “incentivos”.

Os analistas que sublinharam os riscos que correria Putin ao invadir a Ucrânia não subestimaram esses riscos. Eles estão a revelar-se avassaladores. Mas alguns leram mal o Presidente russo ao concluir que ele faria um cálculo semelhante entre custos e benefícios. Outros analistas menorizaram os riscos, enfatizando a dificuldade que a Europa teria em impor custos a Putin devido à sua dependência energética da Rússia. Talvez tenham subestimado o poder de algo intangível: a reacção das populações. No entanto, não deixa de ser verdade que a energia se mantém como a última matéria que o Ocidente ainda não utilizou para sancionar o regime de Putin.

A segunda característica é a profundidade histórica. Quando analisamos a invasão da Ucrânia, é essencial ter em conta a História da região e das partes envolvidas. Mas a História não serve apenas para estabelecer o contexto. Afinal, o passado é o único laboratório disponível à disciplina das RI, e por isso também deve ser visto como uma fonte de teoria.

Na História da Guerra do Peloponeso, Tucídides (séc. V a.C.) tenta compreender uma guerra de uma intensidade inesperada e com um desfecho surpreendente. Atenas, a grande potência naval da altura, perde contra Esparta num conflito que envolve todo o mundo helénico. Porquê? Tucídides integra na sua explicação uma multiplicidade de factores que nos ajudam ainda hoje a perceber a realidade internacional.

Um deles é o papel da confiança excessiva gerada por sucessos passados na decisão de iniciar hostilidades. Essa arrogância leva Atenas a abrir uma segunda frente de batalha na distante ilha da Sicília. Para Tucídides, trata-se de um erro estratégico com origem na ambição pessoal de certos políticos atenienses. Esta ideia ajuda a perceber o móbil de Putin, que ao longo da sua carreira acumulou uma série de sucessos em jogadas de risco (Chechénia, 1999; Geórgia, 2008; Ucrânia, 2014; Síria, 2015) e que agora via a Ucrânia a afastar-se da influência russa.

Durante a guerra, Atenas desbarata a sua legitimidade ao cometer aquilo a que hoje chamaríamos crimes de guerra. A forma cínica e cruel como trata a ilha revoltosa de Melos é arrepiante na sua semelhança com o que Putin está a fazer à Ucrânia. Esparta vira a brutalidade ateniense a seu favor, incentivando várias cidades-estado importantes a abandonar Atenas e a juntar-se à sua causa. Tal como os atenienses, Putin descobriu que a percepção de moralidade e de justiça das acções dos Estados pode ser decisiva.

O mundo está a passar por aquilo a que nas ciências sociais se chama “conjuntura crítica”. O que acontecer agora determinará a arquitectura da próxima ordem internacional. Por isso precisamos mais do que nunca de investigadores de política internacional e de analistas que façam a ponte entre a academia e o público. A revolução internacional em curso suscitará o interesse de muitas pessoas por estas matérias. Talvez as mais jovens considerem agora ingressar em cursos superiores como Relações Internacionais, Ciência Política ou Estudos Europeus. Felizmente temos muita e boa oferta nas universidades portuguesas. Aproveitem.

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