A caminho de nova ordem mundial
O desfecho da guerra na Ucrânia ajudará a desenhar um novo sistema internacional. A China procura manter a ambiguidade, mas faz um jogo perigoso de que se poderá vir a arrepender
A prazo, a mais relevante consequência da invasão da Ucrânia será o seu efeito sobre a ordem mundial, o que já se sente mas de forma ténue. No seu encontro de três horas, no dia 4 de Fevereiro em Pequim, Xi Jinping e Vladimir Putin fizeram registar no comunicado final: Pequim e Moscovo entendem que o mundo deve ser “multipolar” e dizem-se a favor de uma “democracia autêntica”. Denunciaram uma “atitude de guerra fria” por parte dos Estados Unidos e comprometem-se a uma larga colaboração. O documento refere o expansionismo da NATO e a questão de Taiwan, mas ignora a Ucrânia.
As palavras não eram novas, e já antes Pequim e Moscovo tinham apelado a uma nova ordem internacional, mas significavam um largo passo na aproximação dos dois países e na sua hostilidade comum aos EUA. A primeira pergunta é: Moscovo e Pequim constituem um novo bloco político contraposto ao bloco ocidental? Este é um modelo que levaria a arranjos semelhantes aos da antiga Guerra Fria, coisa a que Pequim sempre se opôs e continua a opor. A sua estratégia económica seria posta em causa. De resto, o Império do Meio não gosta de alianças que o amarrem, preferindo acordos, pactos ou parcerias.
Mas ao alinhar com Moscovo na véspera da invasão, Pequim corre um risco perigoso, o de se ver envolvida num conflito em que não tem qualquer interesse. Ignora-se se, ou quando, Putin avisou Xi. Na véspera da invasão, todos os analistas e funcionários chineses recusavam a possibilidade do ataque e denunciavam o alarmismo americano.
Se não se sabe o que disseram os dois líderes, dizem os sinólogos que é extremamente improvável que Xi tenha dado uma luz verde a Putin. No seu encontro com Emmanuel Macron, disse o dirigente chinês: “Todas as partes interessadas devem aderir a um acordo político, recorrer a todas as plataformas e encontrar uma solução global para a questão ucraniana através do diálogo e da consulta.” Tudo isto indica que a invasão foi um acto unilateral de Putin e que, de resto, manifesta a sua independência em relação a Pequim. É também provável, dizem sinólogos, que Xi tenha calculado que uma guerra feriria a Rússia, a Europa e os Estados Unidos muito mais do que a China. São especulações, na realidade, nada sabemos.
O embaraço de Pequim
Não faltaram os indícios de mal-estar de Pequim. Por um lado, recusam falar em guerra, falam em conflito. Por outro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, não se cansa de repetir que a China “defende sempre que a soberania e a integridade territorial de todos os países devem ser respeitadas” e que “a Ucrânia não é excepção”. Declarou-se “extremamente preocupado com o sofrimento dos civis”. Por fim, o ponto mais manifesto do embaraço da China foi a abstenção na votação no Conselho de Segurança da ONU. Para lá disto, Pequim tem dado a entender que poderia ser mediadora no conflito. É uma hipótese absurda que exigiria que Putin estivesse prestes a fazer concessões de vulto aceitáveis pela Ucrânia. Pequim não se sairia bem.
A invasão da Ucrânia não garante um futuro brilhante às relações Rússia-China. Pequim tem interesse na aproximação, sobretudo em termos geopolíticos. A Rússia também porque está isolada. É um “casamento de conveniência” em que Moscovo é o junior partner e não o pólo dominante. “Um eixo Pequim-Moscovo mais forte encorajaria os rivais da China a unirem-se contra ele”, escrevem os sinólogos Jude Blanchette e Bonny Lin, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (CSIS), de Washington. Também na Europa, a China teme sofrer uma ressaca comercial.
“Na Ucrânia, a China está a jogar um jogo perigoso, de que se pode vir a arrepender”, comentavam os dois sinólogos na véspera da invasão. Consumada esta, Bonny Lin observou que Pequim “tentava equilibrar os seus vários objectivos, mas todas as indicações dão, neste momento, prioridade à Rússia.” Outro analista anotou que “o principal objectivo político de Pequim é enfraquecer a ordem liberal liderada pelos EUA.” A Rússia e a China são grandes potências absolutamente interessadas na destruição dessa ordem.
A lição que se pode tirar é que, aos olhos de Pequim, a invasão da Ucrânia foi um acto nocivo, mas que não altera a sua principal meta. O que Xi não calcularia é que a aventura militar de Putin iria desestabilizar o mundo. A desordem semeada por Putin é exactamente o oposto da estabilidade internacional de que XI precisa para consolidar os êxitos da China. E muito menos imaginaria que o seu amigo Putin iria pôr em causa o slogan da decadência ocidental, provocando um alinhamento geral da Europa e dos EUA, da NATO e dos seus aliados.
A futura visão da ordem internacional depende largamente do desfecho da guerra na Ucrânia. Muito em breve, a tropas de Putin estarão atascadas na lama da Primavera. Têm muito pouco tempo para conquistar as cidades, o que faz prever dias de guerra selvagem. Será a altura de Pequim jogar as suas cartas para tentar proteger a Rússia. A tensão nos países da NATO na fronteira da Rússia vai ser intensa e perigosa. O fim da guerra, em que se decidirá a unidade ou a destruição da Ucrânia, exige a máxima pressão da União Europeia e dos Estados Unidos. A “nova ordem mundial” demorará a revelar-se.