Dia 3 da “caravana humanitária”: Kateryna é ucraniana, estuda na Polónia e fala português. Ajudou a guiar 135 pessoas até Portugal
Na quinta-feira à tarde, as carrinhas e carros portugueses chegaram a Cracóvia, descarregaram os bens num armazém improvisado num centro cultural e conheceram as 135 pessoas que vão trazer para Portugal. Os autocarros da “caravana humanitária” foram para Varsóvia, de onde vão trazer 95 pessoas. Partem esta sexta-feira.
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Kateryna Melnyk não espera que as portas do elevador se abram até ao fim para entrar. Na estação de comboios de Cracóvia, na Polónia, parece das poucas pessoas com um rumo definido. “Estão em que plataforma?”, pergunta, em português, sem parar de andar. É difícil saber. “Tudo bem”, diz, muito calmamente, quando desliga a chamada a Eduarda Martins, uma das cidadãs portuguesas que organizaram uma “caravana humanitária” que trará para Portugal cerca de 250 pessoas que deixaram a Ucrânia desde a invasão russa.
A estudante de Administração aproxima-se das mães e crianças que aguardam em grupos pela estação e tenta perceber, em ucraniano, se são elas que pretendem vir para Portugal. “Ni”, respondem-lhe, uma e outra vez.
Muda para polaco. Tenta agora saber se alguns dos voluntários de colete amarelo que percorrem a estação de comboios com sumos, águas, comida, produtos de higiene e mapas conseguem ajudá-la a ajudar.
Já no primeiro dia de voluntariado, Maria, de 22 anos, ainda está a começar a perceber o que é útil ou não. Veio depois das aulas de jornalismo, quando já não conseguia ignorar as pessoas que passavam por ela de mala na mão e “olhar confuso” na cidade onde vive confortavelmente. “Mesmo que a comida não seja uma emergência para muitas pessoas que aqui chegam, sentir que têm outras pessoas a ajudá-las, a recebê-las, pode fazer com que se sintam melhor”, acredita.
Se “era difícil” juntar amigos para outras causas onde foi voluntária, como as noites de Natal que passa com pessoas em situação de sem abrigo, sente “um consternação” quase nacional pelas pessoas que chegam.
A Polónia já recebeu mais de um milhão e 400 mil pessoas desde que Vladimir Putin começou a guerra na Ucrânia. Aliados próximos, que partilham cerca de 500 quilómetros de fronteira, precisam de ser cidadãos ucranianos ou residir legalmente no país para conseguirem o estatuto de refugiados. “Não queremos que se sintam inseguros também aqui”, diz Maria, antes de começar a responder às perguntas de outro grupo, que acaba de chegar à estação num comboio oriundo de Varsóvia.
Eduarda Martins e Kateryna Melnyk lá encontraram o grupo de mulheres, crianças e adolescentes (e um cãozinho que cabe numa bolsa) que precisava de boleia para o hotel que serviu de centro de acolhimento para as 135 pessoas que, esta sexta-feira, partem para Portugal. Os autocarros foram para Varsóvia, de onde levarão 95 pessoas.
De manhã, Kateryna Melnyk tinha chegado ao átrio da residência de estudantes onde vive, em Cracóvia, e ouviu falar português. Por ter saudades da língua, e mais ainda do país, aproximou-se da central telefónica improvisada por três voluntárias portuguesas e perguntou se podia ajudar. Estefânia, Eduarda e Mariana ficaram a olhar para a rapariga ucraniana de 20 anos, como se a tentar decidir entre as três se ela tinha mesmo descido as escadas e feito aquela pergunta.
Tranquilizar as pessoas que chegavam ao átrio da residência-hotel onde vive, um modelo que se replica pela Polónia, não estava nos planos da estudante para esta quinta-feira. “Não tens mesmo de ir estudar?”, pergunta, a certa altura, Mariana Bueri, num raro intervalo entre chamadas. “Tudo bem”, responde Kateryna, antes de voltar para o autocarro da Junta de Freguesia de Fornelo que vai buscar uma outra família, que não sabe explicar onde está.
Como conhece a cidade, conseguiu perceber onde estavam. Apresenta-se e dá logo a mão à criança mais nova, que saltita com uma minimochila transparente às costas, divertido com o que Kateryna lhe disse em ucraniano. “Adoro crianças. Como não?...”, diz.
Os pais estão na Ucrânia, numa cidade à beira-rio no Oeste. Em Kanianets-Podilskyi, mais perto da fronteira com a Moldova, “está tudo calmo” e os pais não consideram sair. Fala mais de Viseu, onde viveu durante oito anos, do que da sua cidade natal. “A comida portuguesa!”, exclama. Relembra os encontros no Fórum e no shopping Palácio do Gelo. Ainda tem “muitos amigos” em Portugal. Foi o mais alto que a ouvimos falar durante um dia em que teve de atender dezenas de chamadas e guiar grupos de mais de dez pessoas.
À noite, quando chegou ao quarto da residência onde esta noite também dormiram as pessoas que ajudou a reunir, entrou no Instagram e publicou uma fotografia dos voluntários portugueses organizados numa linha de distribuição para descarregar os bens que foram doados por organizações e pessoas em Portugal. “Estou mesmo muito feliz por vos poder ajudar, foi uma grande aventura”, escreveu, em português.
Dois voluntários portugueses num armazém solidário polaco
Quando estava a chegar ao armazém de recolha de bens, improvisado no Centro Cultural Nowa Huta, Susana Esteves viu um camião com uma bandeira portuguesa. O motorista contou-lhe que não conseguiram aproximar-se da fronteira e, por isso, estavam ali, a descarregar caixas e caixas para o camião “que todos os dias sai do armazém”. “De repente, chegam os portugueses todos”, diz, ainda incrédula.
Enquanto a cidade se enchia de gente, que “antes poderiam ser turistas”, de mala na mão e animais de companhia pela trela, Susana sentia-se “inútil em casa”. A trabalhar na área da informática, veio para a Polónia atrás das “condições de trabalho que não encontrava em Portugal”.
João Guilherme, de 29 anos e engenheiro electrotécnico que também ajuda a empacotar caixas, veio pela mesma razão. Chegou ao armazém, onde anda de um lado para o outro de T-shirt, através de uma publicação de Susana no grupo de Facebook “Portugueses na Polónia”. “Notas um rebuliço: as pessoas querem ajudar e estão sempre à procura de formas de ajudar. É incrível o sentido de ajuda que há aqui na Polónia.”