“Morrer por amor”: dois funerais em Lviv
Nas guerras mata-se e morre-se. É um facto da vida. Os primeiros soldados ucranianos caídos começam a chegar às suas terras. Em Lviv foi o dia do enterro de Ivan e Viktor.
Os caixões saem a passo lento da igreja, cobertos com o azul e o amarelo da bandeira ucraniana. São transportados por soldados muito jovens, que se esforçam por esconder a emoção por trás de um rosto impassível. É mais uma tarefa na vida de um militar. Mas não é de vida que hoje se trata, mas sim de morte. Vão a enterrar, nesta terça-feira em que se percebeu um raro vislumbre de sol entre as nuvens, Ivan e Viktor, mortos há alguns dias durante os combates em Mykolaiv, no Mar Negro.
Atrás de cada um dos caixões vão os pais, mulheres, filhos, todos de preto. Não estão em choque. Ambos morreram há mais de cinco dias, portanto a notícia já não é fresca, mas nem por isso a emoção é menor. Ivan e Viktor eram de Lviv e são velados na Igreja de São Pedro e São Paulo, no centro da cidade, que já se acostumou a enterrar os militares filhos da terra – a invasão russa começou há menos de duas semanas, mas há uma guerra, no Leste, que dura há oito anos.
A cerimónia é curta, parece haver um protocolo instituído que torna tudo muito rápido. A prática torna tudo eficiente, até os rituais da morte. As carrinhas mortuárias param perto da porta da igreja, desobrigando familiares e amigos de um longo desfile. Lá dentro, três padres começam por ler escrituras bíblicas cantando de forma monocórdica. Reservam algumas subidas de tom para expressões como “slava gospod” (glória ao senhor), que são acompanhadas pelos crentes que se benzem rapidamente.
Segue-se um sermão em que se recordam os dois mortos. O padre diz que Ivan e Viktor “morreram por amor”. “Combateram por amor à sua terra, ao seu país, às suas famílias e ao povo ucraniano”, declara. Quem nos ajuda a perceber é Olga, uma jornalista de Lviv que veio ao funeral acompanhar o marido, que era um amigo próximo de Viktor.
Praticamente desde o primeiro dia da ofensiva que Mykolaiv tem sido alvo de intensos combates. Trata-se de um ponto estratégico importante por estar entre Kherson, já tomada pelas forças russas, e Odessa, o maior porto sob controlo ucraniano. Até ao momento, o Exército ucraniano tem conseguido resistir aos avanços russos, mas teme-se que, tal como Kherson, também esta cidade de 500 mil habitantes seja tomada pelas forças ao serviço de Moscovo. De acordo com as informações oficiais, pelo menos oito militares ucranianos morreram em Mykolaiv nos últimos dias.
Há vários anos que Viktor, que tinha menos de 30 anos, combatia como voluntário no Exército ucraniano, explica Olga. Primeiro no Donbass contra os grupos separatistas pró-russos que ocupam parte das regiões de Donetsk e Lugansk, e agora na linha da frente que tenta resistir à invasão russa.
Antes tinha trabalhado como jornalista num dos principais jornais do país, o Ekspres, onde conheceu o marido de Olga. “Toda a redacção está muito triste. Ele era uma pessoa muito boa, inteligente e patriota”, diz.
Ivan era oficial do Exército. Tinha 43 anos e deixa a mulher, os pais e uma filha de 16 anos. Durante a missa, o padre ungiu-os como “heróis da Ucrânia”. Assim se vai escrevendo a História desta guerra. As suas fotografias serão exibidas entre as centenas que figuram em expositores na igreja de São Pedro e São Paulo, local de peregrinação do patriotismo ucraniano.
A Ucrânia tem aprendido a construir a sua identidade tendo por base os seus mártires. Na História recente começa com os chamados “cem celestiais”, os manifestantes mortos pela polícia antimotim durante os grandes protestos de 2014 na Praça da Independência, em Kiev. Ainda hoje esse acontecimento é encarado como a peça crucial que desencadeou a fuga do então Presidente Viktor Ianukovich do país e a proclamação da “Revolução da Dignidade”, como apelidam os ucranianos. No centro de Kiev, hoje parcialmente destruído pelas armas russas, era possível ver murais e fotografias destes manifestantes perto do local onde pereceram.
Seguem-se os mortos em combate no Donbass, numa guerra que nunca parou e que agora conflui na invasão russa de todo o país. Viktor e Ivan são dois dos primeiros mártires que vão servir para aprofundar a identidade ucraniana e o ressentimento face à Rússia durante gerações.
Momentos como este, em que a morte parece dominar o discurso e as atitudes, não são confundidos com derrota. “Temos a certeza de que vamos vencer desde o primeiro dia”, afirma Olga. Num país em guerra, a perda de uma vida é uma tragédia, mas todos parecem mentalizados para continuar a luta. Quem assistiu aos dois funerais talvez se anime ao passar pela porta de um dos cafés que, por estes dias, exibe as baixas do inimigo – são mais de onze mil no dia em que Ivan e Viktor vão a enterrar, segundo o Governo ucraniano. A morte com morte se paga.
Mas vale a pena sofrer assim por uma ideia? “Ficamos muito tristes quando os outros países não percebem o que sentimos aqui, e esperamos que toda a Europa e o mundo percebam que a nação ucraniana existe e é uma nação diferente de outras, especialmente da Rússia”, justifica Olga, numa espécie de definição de patriotismo em tempo de guerra.
Diz que quando vai ao estrangeiro se sente mal quando lhe perguntam “se a Ucrânia fica na Rússia”. “Explicamos sempre que somos uma nação muito antiga, com grande tradição, e um grande povo que fez muitas coisas pela civilização moderna”, conta. A guerra que se abateu sobre o seu país é agora uma oportunidade para consolidar a ideia de nação ucraniana, argumenta. “Mas é um preço muito elevado para nós.”