Numa missa em Lviv pergunta-se: “Podemos rezar por quem mata?”
A Igreja de São Pedro e São Paulo congrega duas das características mais proeminentes de Lviv: a religiosidade e o patriotismo. À saída da missa, debate-se o perdão e a humanidade na guerra.
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É sábado de manhã e do interior da Igreja de São Pedro e São Paulo, no centro de Lviv, sai um cântico triste e monocórdico. O padre dá o sermão num ritmo musical acompanhado de um coro que ecoa por toda a igreja. Lá dentro, os fiéis benzem-se com frequência ao ouvirem evocações a Deus, mas também quando entram, quando saem ou quando passam em frente aos santos.
A igreja começou a ser construída no início do século XVII pela Companhia de Jesus e serviu de basílica militar até ao fim da II Guerra Mundial. Durante a ocupação soviética tornou-se um armazém de livros ao serviço da Academia Nacional de Ciências da República Socialista Soviética da Ucrânia que chegou a albergar mais de dois milhões de volumes. Hoje, faz parte da Igreja Católica Ortodoxa Ucraniana, mas o estilo barroco continua a remeter para a estética própria das igrejas católicas ocidentais. No tecto, os frescos renovados podiam perfeitamente estar enquadrados numa igreja em Itália, assim como os santos em ambas as alas. No altar, apenas dois ícones recordam o rito ortodoxo.
A guerra não nos abandona. É na Igreja de São Pedro e São Paulo que são celebrados os funerais dos soldados da região de Lviv que têm morrido na guerra no Donbass desde 2014. E também daqueles que vierem a morrer a combater a invasão russa. No interior da igreja estão expostos os painéis com os rostos e nomes dos militares locais que morreram no Leste nos últimos oito anos, fragmentos de armas e até cilindros de rockets pintados à mão adaptados para suportarem velas.
Num dos painéis estão fotografias de crianças. Filhos dos veteranos de guerra que morreram e representam o futuro da resistência ucraniana na sua eterna luta pela independência. “Sonho construir um comboio que chegue às nuvens onde mora o meu papá”, diz a legenda que acompanha a fotografia de Zakhan Buslaev, de seis anos. Nessa ala, os frescos no tecto tornam-se impossíveis de vislumbrar por causa dos pássaros brancos feitos em origami que o enchem.
Padres e guerra
À saída da missa encontramos Stepan Sus, bispo de Kiev, mas que hoje é um entre os milhares de refugiados internos que procuram manter-se a salvo dos bombardeamentos russos. “Sinto muita tristeza. É inacreditável que no século XXI haja uma invasão como esta”, diz. Na verdade, Sus, que é natural de Lviv, foi durante quase uma década padre na igreja de onde acaba de sair, que define como um “lugar de paz e compreensão”. “Todos, crentes ou não-crentes, precisamos de um lugar onde podemos pensar de onde viemos e onde estamos agora, em quem nos rodeia. E pensar no futuro”, explica o bispo.
O futuro é incerto, mas ao dia de hoje, em que há civis a serem atacados durante um cessar-fogo previamente acordado, como aconteceu em Mariupol, até para um clérigo é complexo falar do perdão. “Estamos preparados para falar de perdão, mas isso só será possível quando pararem de nos matar”, declara.
Apesar da nuvem negra que cruza o seu país, Stepan Sus diz que continua a ver “uma face da humanidade e da generosidade”. Destaca os milhões de pequenos actos de ajuda que se multiplicam dentro e fora da Ucrânia para ajudar quem procura abrigo, comida, ou simplesmente aquecer-se. “Todos se tornaram voluntários e soldados ao mesmo tempo.”
As guerras são momentos de debate interno para crentes e religiosos. Em Lviv, cidade em que a religião e o patriotismo são valores primordiais, essa luta interior está ao rubro. Mas Sus quer deixar um aviso aos ucranianos que agora pegam nas armas para defender o país contra o invasor: “Tenham cuidado com o veneno da guerra.”
Enfrentar aqueles que fizeram o mal era o quotidiano de Konstantin Partelei, padre capelão da prisão de Kiev, que acompanha Sus. Conta que a decisão de abandonar a capital foi “muito difícil” e só tomada depois de um grande debate entre a família. Ele e a mulher queriam ficar por não se sentirem bem em deixar a comunidade que prometeram servir num momento de enormes dificuldades. Mas foi convencido pelos filhos mais velhos – tem seis – de que poderia fazer muito mais para ajudar quem precisa fora de um bunker.
Seguiu-se uma viagem que durou dois dias “muito desgastantes, explica. “Estivemos cansados, sem comida suficiente, mas agora estamos mais recuperados”, conta, enquanto dois dos filhos brincam à sua volta, impacientes com a demora.
O filho mais velho tem vinte anos e tem tentado alistar-se como voluntário nas Forças de Defesa Territorial. A perspectiva de que o seu filho possa vir a desobedecer um dos Dez Mandamentos não o atormenta. “É normal que quando criminosos aparecem para matar a tua família que a defendas. Eles não vieram ter connosco para partilhar uma refeição”, diz Partelei, referindo-se às tropas russas.
O padre encara a guerra travada no seu país como um confronto contra o mal e isso fá-lo rezar pelos soldados no campo de batalha, mas não apenas para que sejam triunfantes. “De cada vez que nos confrontamos com o mal, somos tentados pelo mal. E a principal tarefa de um padre é fazer com que, em condições desumanas, nos mantenhamos humanos.”