O medo da tragédia nuclear voltou à Europa

O nono dia de guerra entre a Rússia e a Ucrânia começou com sobressalto pela tomada da central de Zaporizhzhia. “Estamos completamente em águas inexploradas”, alertou o director da Agência de Energia Atómica. Em Mariupol agravou-se a situação humanitária.

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Edifício residencial atingido em Mariupol Reuters/@AYBURLACHENKO

Toda a Europa ocidental dormia quando um incêndio deflagrou na maior central nuclear do continente. Em Zaporizhzhia, no sul da Ucrânia, o medo de um desastre como o de Tchernobil, que pairava vagamente desde o início da guerra, tornou-se subitamente mais palpável.

O fogo começou depois de um projéctil ter atingido um edifício do complexo e foi dado como extinto pelos bombeiros por volta das 6h (4h em Portugal). Os seis reactores da central não foram afectados e os níveis de radiação não aumentaram, mas a guerra entre a Rússia e a Ucrânia escalou mais um degrau e deixou o mundo de sobreaviso para as possíveis consequências catastróficas do conflito.

“Infelizmente, neste caso, estamos completamente em águas inexploradas”, disse a meio da manhã o director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA, na sigla em inglês). Rafael Mariano Grossi até começou a sua conferência de imprensa com um sorriso triste: “Tivemos uma noite muito longa. Ou curta, depende da perspectiva.” Mas depois, quando enumerou os princípios que devem orientar a actuação das partes beligerantes junto a instalações nucleares, o tom que adoptou foi grave. “Nenhum país discorda destes princípios, mas logo o primeiro – a integridade física das instalações – foi posto em causa com o que aconteceu na noite passada.”

O diplomata argentino sublinhou que “esta situação não tem precedentes” e advertiu que “as palavras têm de significar alguma coisa”. Mais tarde, a bordo de um avião para Teerão, repetiu ao Conselho de Segurança da ONU a proposta que já fizera de manhã: deslocar-se ele próprio a Tchernobil para negociar um entendimento entre Rússia e Ucrânia relativamente à segurança das quatro centrais nucleares que estão a funcionar e daquela, também sob controlo russo, onde se deu o acidente em 1986.

Para Rafael Grossi, além da integridade dos edifícios, deve garantir-se a manutenção dos sistemas de segurança, o pessoal especializado deve continuar a trabalhar normalmente, a monitorização dos níveis de radiação tem de continuar e é preciso manter uma fonte de electricidade localizada fora das centrais. “A operação na central [de Zaporizhzhia] continua normalmente, embora não haja nenhuma normalidade quando há forças militares a mandar”, disse o director da IAEA ao Conselho de Segurança da ONU.

“Histeria artificial”

A reunião deste órgão foi convocada pelo Reino Unido, cuja embaixadora nas Nações Unidas, Barbara Woodward, disse que “esta foi a primeira vez que um Estado atacou uma central nuclear a funcionar” e que “isto não pode voltar a acontecer”.

No conselho repetiu-se o pingue-pongue de acusações que decorreu durante o dia. O Presidente ucraniano acusou a Rússia de ter atacado a central deliberadamente e foi secundado pelo Reino Unido e pelos EUA. “Europeus, acordem, por favor! Digam aos vossos políticos que as forças russas estão a disparar contra uma central nuclear na Ucrânia”, disse Volodimir Zelensky em vídeo. “Só com acção imediata da Europa será possível parar o exército russo”, apelou.

Petro Kotin, director da empresa que gere as centrais nucleares ucranianas (Energoatom) divulgou um comunicado em que acusa os russos de terem invadido o complexo de Zaporizhzhia “com cerca de 100 unidades” e de terem disparado sobre a entrada e o edifício administrativo “até tomarem o controlo”, num acto que classifica como “terrorismo nuclear”. Quanto ao edifício que ficou em chamas, critica também: “Durante muito tempo, eles não permitiram que os bombeiros apagassem o fogo.”

Esta versão dos acontecimentos foi negada pelo Kremlin. Primeiro pelo ministro da Defesa, que apontou o dedo a “sabotadores” ucranianos, e mais tarde por Vassily Nebenzya, segundo o qual as tropas russas foram atacadas e responderam, mas quem pegou fogo ao edifício foram as tropas da Ucrânia. “Esta reunião é outra tentativa das autoridades de Kiev de propagar histeria artificial sobre o que está a acontecer na Ucrânia, com o apoio do Ocidente”, acusou o embaixador russo na ONU. “Nós queremos que a segurança seja mantida. Tal como os povos da Bielorrússia e da Ucrânia, sofremos a tragédia de Tchernobil e temos todo o interesse em manter a estabilidade nuclear do território.”

“Imploro apoio para Mariupol”

Com a central nuclear sob controlo, as tropas russas na frente Sul continuaram na sexta-feira a sua aproximação às cidades de Zaporizhzhia, para Norte, e de Mykolaiv, para Oeste, depois de no dia anterior terem garantido a primeira conquista relevante, em Kherson.

Em Mykolaiv, uma importante cidade portuária com acesso directo ao Mar Negro, as tropas ucranianas conseguiram recuperar o controlo do aeroporto e mantiveram o inimigo nos arredores. “Eles estão a agrupar tropas e penso que nos querem atacar o mais brevemente possível”, disse o presidente da câmara, Oleksandr Senkevich, ao The New York Times. “O nosso único plano é lutar até ao fim”, acrescentou.

Ninguém sabe o que acontece a seguir, mas especula-se que o próximo alvo russo seja Odessa, a terceira cidade ucraniana, também na costa do Mar Negro, perto da fronteira com a Moldova. A cidade está a preparar-se há vários dias para uma eventual invasão por terra e água, com as ruas cheias de sacos de areia e estruturas metálicas para impedir o avanço dos veículos militares que ali venham a entrar.

Entretanto, na outra ponta da costa, as preocupações ucranianas recaem sobre Mariupol, cercada pelos russos e pelas forças da região separatista de Donetsk. A cidade “tem estado sob bombardeamentos imparáveis em áreas residenciais há cinco dias”, denunciou o presidente da câmara na televisão. “Eu imploro por apoio para Mariupol”, disse Vadym Boychenko, explicando que a cidade não tem electricidade, água ou aquecimento e que a comida e os medicamentos estão a esgotar-se.

“Mariupol ainda tem a bandeira ucraniana, mas também precisamos de assistência militar, um corredor e silêncio para que a nossa população possa ser retirada”, afirmou Boychenko. “Estamos a fazer o possível para que esse corredor seja criado, para que possamos fazer uma evacuação apropriada. Há muito a fazer, mas antes de mais precisamos de silêncio.”

Em nove dias de guerra, mais de 1,2 milhões de pessoas já abandonaram a Ucrânia em direcção à Polónia, à Hungria, à Moldova, à Eslováquia e à Roménia. O Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações Unidas contabiliza 331 civis mortos e 675 feridos no conflito.

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