Para quem foge da guerra, o paraíso pode ser uma tenda aquecida
Em Isaccea, na margem do Danúbio, os refugiados ucranianos chegam de ferry para um abraço em forma de generosidade e eficiência. De sirenes de alarme a todo o instante para um espaço de acolhimento criado a pensar na rapidez e conforto.
De três em três horas, os ferries atravessam o rio Danúbio com ucranianos que fogem das várias cidades da província de Odessa. Isaccea, no leste da Roménia, é o porto de abrigo que as recebe de braços abertos e infra-estrutura montada e oleada para os registar e enviar para onde querem ir ou, quem não tem para onde ir, para os centros de acolhimento de Galati ou Tulcea.
O fluxo de ucranianos que entra na Roménia está a aumentar de dia para dia, a última contabilidade feita pela guarda fronteiriça romena dá conta da chegada de mais 28.563 pessoas nas últimas 24 horas, sendo que desde a invasão russa do país vizinho chegaram à Roménia 167.613 ucranianos.
Aqui, em Isaccea, a maioria chega a pé, arrastando as malas de rodinhas e, como nas fronteiras da Polónia, da Hungria, da Eslováquia, da Moldova, são, sobretudo, mulheres e crianças, alguns mais idosos. A expressão de cansaço é evidente, assim como a sensação de alívio quando descem do barco.
As temperaturas andam a rondar os zero graus, mas o vento gélido que vem do Danúbio faz descer consideravelmente a sensação térmica e alguns ucranianos, mesmo habituados a Invernos duros, chegam a tremer.
Um frio que contrasta com toda a estrutura montada pelas autoridades romenas para receber quem foge do conflito do outro lado do rio. Bombeiros, guarda fronteiriça, emergência médica, Cruz Vermelha, voluntários, a Roménia envidou esforços para acolher calorosamente os que chegam sem saber do futuro, querendo apenas colocar uma fronteira de distância entre si e a guerra.
“O medo está instaurado na cidade e as pessoas buscam sair de toda forma”, afirma Nikolai Zechkov. Ele e a mulher, Oksana, vêm de Izmail, cidade histórica de mais de 70 mil habitantes nas margens do Danúbio que pertence ao oblast de Odessa, uma das 24 divisões administrativas em que está dividida a Ucrânia. São ambos professores de inglês e decidiram fugir com os três filhos por temerem o pior.
Nikolai diz que os alarmes em Izmail soam constantemente e mesmo a 250 km de Odessa ouvem-se, de vez em quando, os barulhos das bombas, possivelmente dos ataques aéreos.
A entrada na Roménia trouxe-lhes o alívio que precisavam, a recepção dos romenos deixou-os sem capacidade para aguentar as emoções. Oksana não evita que se lhe marejem os olhos: “Nunca esperei uma recepção tão calorosa por parte dos romenos, estão a dar-nos todo o amor e atenção. Não estamos habituados a isto e sentimo-nos muito agradecidos.”
Assim que desembarcam, voluntários romenos recebem os ucranianos, ajudam-nos a subir a rampa, carregar as malas até às 26 tendas de apoio montadas pelos bombeiros. Na tenda principal cabe uma centena de pessoas. É o primeiro abrigo em solo da União Europeia, que os protege do frio, do vento, da chuva e da neve habituais nesta época do ano, mas também garante a primeira triagem.
Com o auxílio de tradutores voluntários, vestidos com um colete amarelo, os ucranianos identificam-se, dizem para onde querem ir e os meios de subsistência que têm, sendo a seguir separados entre passaportes biométricos ou normais, só bilhete de identidade ou outro tipo de documento de identificação. Esta selecção agiliza o processo e define a rapidez com que cada um chega ao seu destino.
As outras tendas servem de apoio para as organizações voluntárias, o armazenamento de material doado pelos civis, havendo algumas aquecidas, onde camas de campanha e cobertores robustos esperam os refugiados que inicialmente não têm um destino definido.
Daniel Nastase, responsável pelas situações de emergência no Delta de Tulcea e pela comunicação dos bombeiros locais, não esconde o orgulho pela infra-estrutura montada, naquele que, diz, “é o melhor e mais organizado centro de acolhimento inicial de refugiados do país. Tudo aqui foi feito com muito empenho e carinho.”
Os refugiados vão saindo aos poucos da triagem para passar pelo posto fronteiriço, não sem antes receberem chá quente, biscoitos, frutas, cobertores, luvas de Invernos, cartões para os telemóveis e até brinquedos para crianças.
O processo de mostrar a identificação para entrar no espaço da União Europeia não demora mais que uns minutos e, assim que terminam as burocracias, passam por um corredor de apoio com barraquinhas montadas por voluntários que oferecem de tudo um pouco, de comida a produtos de higiene.
Muitos ucranianos sentem-se “estranhos” com tão calorosa recepção e, para evitar que as tendas sejam mal interpretadas e a que as famílias não se aproximem por temor a que lhes peçam dinheiro em troca, alguém improvisou um cartaz escrito num cartão a dizer, em inglês e ucraniano, “é tudo grátis”.
Tão grátis como o transporte que os levará da fronteira. São os bombeiros que gerem a avalancha de ofertas de locomoção para os refugiados – fruto da generosidade de particulares e empresas, com autocarros de turismo, mini-autocarros e muitos carros particulares –, dividindo famílias por espaço disponível e destino esperado. Há um grupo de Facebook com 300 mil seguidores onde as pessoas oferecem o que podem para ajudar.
Quem tem parentes e amigos na Roménia ou em outros países da UE segue viagem; os que chegaram com destino incerto, apenas com intuito de fugir, são encaminhados para os centros de acolhimento em Galati e Tulcea, as duas cidades mais próximas.
Shafet Ikonk, um treinador de futebol camaronês, negro, casado com Regina, uma ucraniana, branca, garante que aqui em Isaccea não foi tratado pior por causa da sua cor de pele, como as denúncias que chegam de Medyak, na fronteira polaca. Nem os seus três filhos receberam tratamento pior ou melhor que todas as outras crianças que cruzaram o Danúbio no barco com elas.
Autoridades, bombeiros, voluntários, todos estão empenhados em evitar qualquer relato que possa ensombrar esse orgulho de quem montou esta montra de acolhimento que pode servir de exemplo para a Europa. Que o digam Sénia e Cristina, duas amigas de 16 anos, que fugiram sozinhas porque os pais exercem profissões consideradas indispensáveis para o esforço de guerra.
“A minha mãe teve que ficar porque é enfermeira e a minha avó está muito velhinha. Eu queria ficar com os meus pais, mas eles não me deixaram”, conta Cristina, que chega com “um espero voltar em breve quando isto tudo terminar”. Sénia tem história semelhante e vontade parecida.
As duas querem seguir para Bruxelas, para casa de amigos onde irão ficar, mas Daniel Nastase, preocupado, empenhou-se em garantir que o translado corresse da melhor maneira. “Duas adolescentes sozinhas sem os pais podem cair em mãos erradas durante esta travessia.”
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