O Fernando Rocha Andrade. A minha despedida
O Fernando não era apenas um (bom) técnico. Tinha um sentido e um gosto apurado da política. Sei como senti a sua falta quando, inesperadamente, ele teve de abandonar o Governo.
Um dos maiores privilégios da nossa vida é trabalhar com pessoas inteligentes. Quando, além disso, são cultas, partilham o seu saber com prazer e generosidade, sem arrogância, sabendo que isso não os torna superiores ao coletivo a que pertencem, quando usam o humor com sagacidade, quando são “boa gente”, como é costume dizer-se, então fica-nos a sensação de estar perante espécies humanas raras e muito valiosas.
O Fernando era uma delas. Ele era um jurista de mão cheia e um especialista em Direito Fiscal. Mas não era essa a sua qualidade que eu mais apreciava. O que eu mais gostava nele era ser um criador de soluções, que desenhava primorosamente e executava ainda melhor.
Recordo quando pensámos eliminar o cartão de eleitor nos primórdios do cartão de cidadão nos idos de 2006. À volta tremiam os serviços da administração eleitoral, ameaçando que seria o caos. Mas o Fernando, que conhecia o sistema muito bem, sempre me assegurou a viabilidade da proposta e, no limite do que estava ao seu alcance, procurou transmitir a confiança a quem cabia a decisão. Infelizmente, só eu acreditei.
Quando finalmente, em 2017, mais de 10 anos depois, resolveram adotar a solução que ele tinha sugerido, a qual obviamente foi posta em prática sem causar qualquer problema relevante, ainda nos conseguimos rir os dois, mesmo que seja daqueles momentos que têm pouca piada.
Enquanto secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a partir de 2015, não ajudou apenas nas soluções orçamentais, mas também com medidas de simplificação entre as quais a do IRS automático, sem dúvida e para sempre uma das medidas mais emblemáticas do Simplex.
Por essa altura coincidimos na reunião de secretários de Estado, a que eu presidia e onde ele, com muita frequência, representava Ministério das Finanças e também a “Escola de Coimbra”, como costumávamos dizer em modo de brincadeira, quando se debatiam interpretações díspares ou mais complexas de um qualquer diploma.
O Fernando não era apenas um (bom) técnico. Tinha um sentido e um gosto apurado da política e a sua ajuda foi por isso preciosa. Sei como senti a sua falta quando, inesperadamente, ele teve de abandonar o Governo.
Podem dizer-me que essa saída era inevitável. Mas eu nunca esquecerei o contexto em que isso aconteceu. Pairava a loucura futebolística e o entusiasmo coletivo com a nossa Seleção que jogava em França. Sempre perguntei a mim própria se teria recusado esse convite, caso eu fosse uma adepta fervorosa de futebol e me tivesse surgido a oportunidade de apanhar boleia no avião da Federação, a única maneira de poder ver o jogo e estar a trabalhar em Portugal no dia seguinte de manhã.
Sei bem a dor que isso lhe custou e à sua família. Consigo imaginar e senti ao vivo em alguns momentos a profunda tristeza que o invadiu nos tempos que se seguiram. Nunca saberei se a doença contra a qual o Fernando lutou até ao dia de ontem não teve um pouco a ver com isso.
Seja como for, querido Fernando, naquele dia 26 de dezembro em que não pude ir ver-te a Aveiro, pelas razões que soubeste, resolvi recordar estes pedaços em que nos cruzámos na vida. Eram para ti o meu desejo que te recompusesses e pudéssemos estar mais vezes juntos em 2022, o que, infelizmente, não aconteceu. Nunca consegui enviar-te o que tinha escrito para ti, sempre temendo que achasses que me estava a despedir. Mudando o tempo do verbo, o texto acabou hoje por tornar-se nisso mesmo. Tenho pena que já não o possas ler, mas estou certa que sabias bem o teu valor, tão bem como nós sabemos a enorme falta que nos fazes.