O que fazem as ovelhas no meio da vinha? Trabalham, claro
Na Herdade da Malhadinha Nova, entre Beja e Castro Verde, as ovelhas contribuem para manter a vinha saudável e garantir a qualidade dos vinhos. Elas são as mais fotogénicas, mas estão longe de ser os únicos animais a trabalhar para este ecossistema.
Quando nos aproximamos, cautelosamente, parece que as ovelhas nem deram por nós. Será fácil fotografá-las de perto, pensamos, enquanto comem as ervas que nasceram entre as videiras. Engano. A certa altura, há como que um sinal que nos escapa, mas que percorre o rebanho, lançando-as todas numa correria pela vinha fora. Param depois, a uma distância que, claramente, já consideram segura, e viram-se para nós, observando-nos como quem mede as nossas intenções.
Ficamos assim: elas ali a pensar que raio estão estes humanos a fazer a olhá-las com uma máquina fotográfica na mão e nós a estudar o comportamento delas – todos, de um lado e do outro, totalmente lost in translation.
Nada disto importa muito porque a colaboração entre humanos e ovelhas é, aqui – estamos na Herdade da Malhadinha Nova, no Alentejo, inserida na Rede Natura 2000, zona de protecção criada pela UNESCO e que visa proteger espécies raras como a abetarda e o cisão ou peneireiro das torres –, de vantagem mútua, desde que limitada a um período temporal que vai dos finais de Outubro até inícios de Março. Durante esses meses, as ovelhas podem comer livremente as chamadas ervas daninhas, o que ajuda (e muito) numa vinha em modo de produção biológico como é a da Malhadinha. Ao mesmo tempo, num ciclo natural, vão estrumando o solo, tornando-o mais rico.
Paulo Soares, um dos sócios do projecto familiar que é a Malhadinha (juntamente com a mulher, Margaret, o irmão, João, e a mulher dele, Rita), leva-nos de jipe até à vinha e mostra-nos numa videira os sinais de que muito em breve começarão a romper as primeiras folhas “verdes e macias”. A partir daí, as ovelhas terão que se despedir da vinha porque é muito difícil (embora já existam sistemas para isso) evitar que, para além das ervas daninhas, comam também as folhas das videiras.
“Usamos as ovelhas para este trabalho durante o Inverno. No Verão a questão das ervas deixa de ser um problema, mas na Primavera temos que ter cuidado” para não prejudicar o desenvolvimento da vinha, explica. Desde que a tarefa se inicia que as ovelhas vão rodando pelas várias vinhas. Um outro rebanho, de ovelhas da raça merino negra – todos os animais na Malhadinha são de raças autóctones – está numa vinha noutro ponto da propriedade, a cumprir uma tarefa igual.
Mas, mesmo sendo as mais mediáticas, as ovelhas estão longe de ser os únicos animais a trabalhar para o ecossistema da Malhadinha e para um bom resultado nos 75 hectares de vinha de uma propriedade que, no total, se estende por 455 hectares. Uma das principais ameaças para um produtor são as pragas e aqui, no Alentejo, as preocupações centram-se na cicadela ou cigarrinha verde, que põe os seus ovos nas folhas, dando origem ao nascimento das ninfas que acabam por matar a planta.
“Como, no Verão, a vinha é a única cultura verde que existe aqui, a cicadela refugia-se nela”, explica Paulo. Num regime biológico, sem poder usar pesticidas, uma das soluções é utilizar outras plantas que são colocadas na vinha ou junto a ela precisamente para atrair insectos que ajudem a combater as pragas. Em alguns casos, estes também podem ser introduzidos – foi o que fizeram no ano passado. “Lançámos umas aranhas que combatem os ácaros”, recorda Paulo. Igualmente essenciais são, é claro, as abelhas (existem cerca de 80 colmeias) que não apenas fazem o indispensável trabalho de polinização como fabricam o mel, à venda na loja.
Noutras grandes herdades produtoras de vinho da região, como é o caso do Esporão, são usados morcegos precisamente para esta tarefa de controlo das pragas, mas aqui não faz sentido. “Os morcegos combatem a traça da uva e esse é um problema que nós não temos.” No biológico, é preciso perceber o equilíbrio de cada ecossistema para escolher as soluções mais bem adaptadas aos problemas que possam surgir. Cada animal tem uma função que pode ser útil mas cujos benefícios, e eventuais desvantagens, têm que ser conhecidos.
O mesmo se aplica às plantas escolhidas para complementar este trabalho. Porque aqui não se usam fertilizantes químicos, o estrume de outros animais, como as vacas e os cavalos, é usado para adubar o solo. A par disso, entre as videiras são plantadas leguminosas como a fava ou o grão para ajudar a fixar o azoto, intercalando-as com trevos ou outras plantas autóctones, para aumentar a biodiversidade e atrair diferentes insectos.
Em redor da vinha vêem-se ainda romãzeiras e medronheiros, “que ficam verdes no Verão e trazem muitos insectos auxiliares”. Quando às roseiras, tradicionalmente colocadas nas bordaduras da vinha para “avisar” da chegada de alguma praga (que as atingiria a elas primeiro, permitindo tomar medidas preventivas para proteger as videiras), hoje em dia são meramente decorativas. “Já dispomos de métodos muito mais precisos para esse efeito, mas deixamos as roseiras para enfeitar.”
E este modo de produção biológico (conversão em 2017, certificação oficial desde 2020) não significa um maior volume de perdas na vinha? “Não sentimos isso”, garante Paulo. “Desde o início da Malhadinha sempre tivemos produções baixas mas por opção própria. Sempre fizemos mondas em verde durante a fase do pintor [quando o crescimento dos bagos pára e começa o processo de maturação], ou seja, deitamos cachos para o chão para haver maior concentração nos que ficam, aumentando assim a qualidade. Quando passámos do regime de produção integrada para o biológico, tivemos menos necessidade de fazer essas podas em verde e por isso não sentimos quebra na produção.”
A visão de sustentabilidade na Malhadinha passa igualmente pelo lado humano. “Aqui”, diz Paulo, “todos os trabalhos relacionados com a vinha, seja a apanha, a poda, tudo é manual. Isso implica muita mão-de-obra, o que para nós se justifica não só por causa da qualidade mas porque entendemos que a nossa responsabilidade é também social.” Daí terem, para toda a operação na propriedade, da agrícola ao enoturismo, uma equipa de 100 pessoas. “É verdade que uma máquina faz o trabalho de 50 pessoas num dia, mas não é essa a nossa filosofia.”
Há máquinas para fazer a pré-poda, mas a esta segue-se um trabalho de muito maior precisão – e que é decisivo para o resultado das uvas e, no final, do vinho. “A máquina é cega, sempre.” Só a sensibilidade humana consegue, em cada planta, tomar a decisão do melhor corte para que ela cresça saudável e produtiva, não olhando apenas para a próxima vindima, mas mais para a frente. Por tudo isso, conclui, “preferimos ter estabilidade e pessoas que se sintam identificadas com o projecto”.
Fazemos mais uma tentativa para nos aproximarmos das ovelhas e fotografá-las mais de perto, a comer a erva entre as videiras, mas elas não estão distraídas e logo ganham uma distância segura, ignorando que os nossos esforços têm um único objectivo: que elas fiquem mais bonitas nestas páginas.
Quem visitar a Malhadinha, seja para ficar instalado numa das charmosas casas espalhadas pela propriedade, seja para descobrir o que o chef consultor Joachim Koerper e o chef executivo Rodrigo Madeira fazem no restaurante com o que aqui se produz, da carne dos animais criados no campo aos fresquíssimos produtos da horta ou até às farinhas usadas no pão (uma das novidades da Malhadinha é a farinha de trigo biológica, que se vende na loja da herdade) poderá, durante alguns meses do ano, assistir ao trabalho das ovelhas na vinha.
Durante o resto do tempo, talvez elas não estejam por ali, mas, invisíveis para nós, muitos pequenos insectos andam pelo meio das plantas e dos frutos, mostrando, na prática, o que é a biodiversidade em acção. Um dos projectos da família Soares é o desenvolvimento, com o apoio da Liga para a Protecção da Natureza, de ilustrações científicas de várias das espécies mais pequenas deste ecossistema, que, como é já tradição, aparecerão no futuro nos rótulos dos vinhos, em desenhos das crianças da Malhadinha.