Putin faz cair mais um dos tabus da UE, que vai financiar a compra de armas para as forças ucranianas

Os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE deram luz verde ao uso do dinheiro do Mecanismo de Apoio à Paz para reembolsar os Estados-membros pela compra de material de guerra para entregar à Ucrânia. Comissão avança mais sanções: fecha o espaço aéreo aos aviões russos e retira do ar os canais da propaganda do Kremlin.

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Von der Leyen e Borrell anunciaram hoje o novo pacote de medidas Stephanie Lecocq/REUTERS

Pela primeira vez na sua história, a União Europeia vai financiar a compra de armas e outros equipamentos de guerra letais pedidos pela Ucrânia para as suas forças de combate a resistir à invasão da Rússia, anunciou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que avançou ainda um conjunto de novas medidas restritivas para punir o regime do Presidente russo, Vladimir Putin, bem como do seu colaborador, o líder bielorrusso, Alexander Lukashenko.

“A União Europeia financiará a compra e entrega de armas e outros equipamentos militares a um país que se encontra sob ataque. Este é um momento de viragem”, sublinhou Ursula von der Leyen, que garantiu que os 27 não deixarão sozinhos “os ucranianos que lutam corajosamente pelo seu país”. “A liderança do Presidente Zelensky e a coragem e resistência do povo ucraniano são notáveis e impressionantes. São uma inspiração para todos nós”, declarou.

Por proposta do Alto Representante para a Política Externa e de Segurança da UE, Josep Borrell, os ministros dos Negócios Estrangeiros dos 27 deverão dar luz verde para a utilização de 450 milhões de euros do envelope do Mecanismo Europeu para o Apoio à Paz, um instrumento financeiro externo ao orçamento comunitário, para reembolsar os Estados-membros que estão a fornecer assistência militar à Ucrânia (os tratados impedem os 27 de utilizar as verbas do quadro financeiro plurianual em operações militares).

O país que foi agora invadido pela Rússia já tinha beneficiado de um primeiro financiamento ao abrigo deste mecanismo, que foi criado em 2021, e já serviu para apoiar missões de paz e de formação militar na Bósnia-Herzegovina, Moçambique ou Mali. Mas esse apoio nunca envolveu o fornecimento de equipamentos letais: o que está agora em causa é o reforço das capacidades das forças armadas ucranianas com material de guerra — armamento, munições, sistemas de defesa anti-aérea ou anti-tanque.

“É mais um tabu que cai”, notou o chefe da diplomacia europeia, que justificou esta decisão inédita com a gravidade do mais recente desafio do Presidente Vladimir Putin, que colocou o dispositivo nuclear russo em alerta máximo. “Temos todos que perceber a gravidade da situação, para a Europa e para a segurança global”, alertou Josep Borrell. “Estamos a viver mais um momento sem precedentes, confrontados com a peste da guerra, como nos tempos bíblicos”, comparou, para justificar a acção inédita da UE de financiar a compra de armas.

A decisão dos 27 mostra até que ponto a UE, que não é uma organização militar, está disposta para contribuir, e de forma muito assertiva, no esforço de guerra na Ucrânia. Não deixa de ser um passo arriscado para os parceiros europeus, particularmente aqueles que não pertencem à Nato, e que já tinham sido ameaçados pelo Presidente russo das “consequências mais pesadas que alguma vez tinham experimentado na história”.

Depois de a Alemanha anunciar uma reversão histórica da sua política de não enviar armas para zonas de conflito, e confirmar o envio de mil armas anti-tanque e 500 sistemas anti-aéreos Stinger para a Ucrânia, os parceiros começaram a organizar-se para coordenar os seus esforços em termos de auxílio militar. Portugal vai avançar equipamento militar como coletes, capacetes, óculos de visão nocturna, granadas e munições de diferentes calibres, rádios portáteis completos, repetidores analógicos e espingardas automáticas G3, de acordo com o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho.

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Protesto anti-guerra este domingo em Lisboa REUTERS/Pedro Nunes

Sanções alargadas à Bielorrússia

Na reunião, que decorreu por videoconferência, os ministros europeus aprovaram uma proposta para o encerramento total do espaço aéreo da UE a todos os aviões de propriedade russa, e todas as aeronaves registadas, controladas ou fretadas por entidades físicas ou jurídicas russas.

“Estes aviões não poderão aterrar, descolar ou sobrevoar o território da UE”, informou Von der Leyen, frisando que esta proibição “inclui os jactos privados dos oligarcas”.

A presidente da Comissão já tinha antecipado na véspera novas sanções individuais contra os membros da elite política, das chefias militares e da clique económica que tem estado a sustentar as acções de Putin. O Serviço de Acção Externa da Comissão Europeia esteve a trabalhar para alterar os termos e os critérios para a listagem de personalidades e entidades da Rússia sujeitas a medidas restritivas pelo seu envolvimento na agressão à Ucrânia — e ainda para alargar o regime de sanções que a UE já aprovou contra a Bielorrússia.

“Atacaremos o regime de Lukashenko, introduzindo medidas restritivas contra os seus sectores mais importantes, e sancionando os bielorrussos que estão a apoiar o esforço de guerra russo”, disse Von der Leyen. Os ministros avaliaram e aprovaram restrições às exportações de produtos de combustíveis minerais para o tabaco, madeira, cimento, ferro e aço proveniente da Bielorrússia, e estenderam a esse país a proibição de venda de bens de dupla utilização civil e militar que já tinham decretado para a Rússia. A lista com os nomes de indivíduos russos e bielorrussos, e ainda de entidades dos dois países, que serão alvo de sanções está a ser preparada e deverá ser aprovada em breve.

Igualmente em preparação estão os textos jurídicos que vão fundamentar a exclusão de um conjunto seleccionado de bancos russos do sistema SWIFT de processamento de transferências internacionais. Os ministros confirmaram o seu acordo a esta medida, que foi concertada com os Estados Unidos da América, Reino Unido e Canadá, e que corta praticamente todos os vínculos das entidades financeiras russas ao sistema de financiamento internacional, inviabilizando as trocas comerciais (exportações e importações) do país.

Dada a “complexidade técnica e jurídica” da proposta, não houve condições para que a medida fosse votada este domingo, e aplicada já a partir desta segunda-feira, explicou o Alto Representante para a Política Externa e de Segurança, no final da reunião. Josep Borrell não quis adiantar quaisquer detalhes, nomeadamente sobre quantos bancos serão abrangidos na exclusão. “Verão quando a lista for publicada, esperemos que dentro de algumas horas. Estamos a trabalhar em contra-relógio”, afirmou.

O chefe da diplomacia europeia revelou, ainda assim, que a abordagem da UE será “muito semelhante” àquela que foi seguida quando os parceiros decidiram afastar as entidades financeiras do Irão do sistema SWIFT. Intencionalmente, os europeus deixaram sempre uma frincha aberta para assegurar as transferências que viabilizavam as operações das missões diplomáticas e das organizações não-governamentais no terreno — e mantinham abertos os canais para um eventual regresso às negociações.

Entretanto, os ministros europeus aprovaram já este domingo uma medida que tem um efeito devastador potencialmente maior: a proibição de todas as transacções com o Banco Central da Rússia, e o congelamento de todos os seus activos em território europeu.

Quando os mercados abrirem esta segunda-feira de manhã, o Estado russo já estará impedido de liquidar uma parte muito significativa — “mais de metade”, segundo Borrell — das suas reservas internacionais (aquelas que são detidas em países do G7 e denominadas em euros e dólares) para financiar a operação militar. O chamado “cofre de guerra” que Vladimir Putin tem vindo a arrecadar desde 2014, quando o país foi objecto das primeiras sanções financeiras por causa da anexação da Crimeia, está avaliado em cerca de 630 mil milhões de dólares (cerca de 560 mil milhões de euros).

Na mira da UE não estão apenas acções destinadas a travar a guerra convencional. Ursula von der Leyen apontou para uma outra “etapa sem precedentes” que os parceiros europeus estão dispostos a cumprir: retirar do ar a máquina de propaganda russa, através da proibição da emissão dos meios de comunicação associados ao Kremlin. “Estamos a desenvolver ferramentas para proibir a desinformação tóxica e nociva na Europa”, avançou a líder do executivo comunitário, acrescentando que estações como a Russia Today (RT), a Sputnik e as suas subsidiárias “vão deixar de poder espalhar as suas mentiras para justificar a guerra de Putin e para semear a divisão na UE”.

Assistência humanitária a caminho

No fim do Conselho de Negócios Estrangeiros, Josep Borrell repetiu que os 27 estão “extremamente preocupados” com a componente humanitária da crise, e disponíveis para activar todos os instrumentos ao seu dispor para apoiar a população ucraniana afectada pela guerra, dentro e fora do seu país.

De acordo com os números avançados pelo comissário europeu com a pasta da Ajuda Humanitária e Gestão de Crises, Janez Lenarcic, mais de 300 mil cidadãos fugiram já da Ucrânia para os países fronteiriços da UE, particularmente a Polónia. As estimativas da UE apontam a possibilidade de a vaga de refugiados poder crescer para sete milhões de pessoas com o arrastar do conflito.

Num encontro extraordinário do Conselho de Assuntos Internos da UE, os 27 concordaram em accionar o Mecanismo Europeu de Protecção Civil, ao abrigo do qual pelo menos oito Estados-membros já começaram a fornecer material de assistência emergente à Ucrânia, desde tendas aquecidas a kits médicos. Ao mesmo tempo, vários anunciaram já medidas unilaterais que visam facilitar o seu acolhimento: a Polónia e a Alemanha, por exemplo, informaram que os ucranianos não pagarão bilhetes para usar os seus transportes públicos.

Além disto, para facilitar o acolhimento dos ucranianos que estão a fugir da guerra, os 27 estão preparados para activar a directiva da protecção temporária, que remonta já a 2001, mas nunca foi utilizada (vários Estados-membros impediram que fosse utilizado no Verão passado, perante o caos da retirada das forças ocidentais do Afeganistão, para facilitar a vinda de afegãos para a Europa).

Em declarações aos jornalistas portugueses em Bruxelas, a secretária de Estado da Administração Interna, Patrícia Gaspar, repetiu a disponibilidade do Governo para receber todos os cidadãos ucranianos que procurarem refúgio no país, estando inclusivamente já preparada uma “solução chave na mão” para o seu acolhimento.

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