Rendimento Básico Incondicional, uma ideia do séc. XVI que interessa à Europa do séc. XXI

Num tempo de incerteza provocado pela guerra na Ucrânia, 200 cidadãos reuniram-se neste fim-de-semana para debater a economia e o emprego na Conferência sobre o Futuro da Europa. O Rendimento Básico Incondicional foi um dos temas abordados.

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Rendimento Básico Incondicional é uma prestação universal Pedro Fazeres

A ideia não é nova e remonta ao século XVI, mas a pandemia da covid-19 reacendeu o debate: é possível a todo o cidadão ter direito a um rendimento mensal, pago pelo Estado, só pelo simples facto de estar vivo? Na Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE), que este fim-de-semana, em Dublin, reuniu cerca de 200 pessoas num painel dedicado ao tema “Uma economia mais forte, justiça social e emprego / Educação, cultura, juventude e desporto/ Transformação digital”, o Rendimento Básico Incondicional (RBI) esteve presente e não foi propriamente uma novidade. Nos relatórios já publicados sobre a iniciativa dinamizada pelas instituições europeias, é referido que “é importante tomar medidas em matéria de segurança social para alcançar a justiça social” e que o RBI é o mecanismo mais frequentemente sugerido para que a “Europa seja mais inclusiva e socialmente justa”.

Num dos relatórios, o participante Ronald Blaschke escreveu que o RBI “é a forma de assegurar a oportunidade de cada pessoa participar na sociedade”. A sua mensagem, também publicada na plataforma online da CoFoE e aprovada por mais de 300 cidadãos registados, explicou, ponto por ponto, a ideia da sigla: “O RBI é universal — é pago a todos, independentemente da idade, descendência, local de residência ou profissão , individual toda a gente tem direito ao rendimento, seja qual for o agregado familiar , e é incondicional é um direito humano e legal e não depende de quaisquer pré-condições, como ter emprego remunerado”.

Para o alemão, o RBI deve ser elevado para “proporcionar um padrão de vida decente, que atenda aos padrões sociais e culturais do país onde está”, propondo que o valor líquido do subsídio esteja acima do limiar da pobreza determinado pela União Europeia, ou seja, 60% do rendimento equivalente ao líquido médio nacional.

O RBI dava uma série documental

No Parlamento Europeu, um dos rostos mais defensores da medida é português. O eurodeputado Francisco Guerreiro, da Aliança Verde Europeia, eleito pelo PAN entretanto desfiliou-se , lançou uma série documental “RBI: Um caminho de Liberdade”, que explica, em doze episódios, o que é a medida, convidando várias personalidades portuguesas e estrangeiras a falar sobre o assunto. “É uma ideia que quer tornar simples o debate sobre o que é o RBI. Tem vários participantes, como o Carlos Moedas, de diferentes quadrantes políticos e de outras áreas da sociedade”, diz ao PÚBLICO Francisco Guerreiro.

O eurodeputado acredita que o RBI, numa fase inicial, deveria ser implementado a nível nacional. Depois de ter encomendado um estudo à Marktest, no qual se concluiu que 76% dos inquiridos são a favor de ter um rendimento extra ao salário, Francisco Guerreiro lançou outro estudo, elaborado pelo professor da Universidade do Minho Roberto Merrill, no qual é sugerida a criação de uma experiência-piloto do RBI em Portugal: “O que se propõe é um projecto que inclua duas a três mil pessoas, com um rendimento de 540 euros, durante um período entre dois a três anos, sob a alçada de uma comissão técnica e científica. A nível orçamental, a experiência seria feita com recurso a uma verba alocada no Orçamento do Estado.”

Para a defesa desta prestação social, Francisco Guerreiro argumenta que existem alguns projectos-piloto que indicam que o RBI “cria mais emprego, melhora a saúde mental e que há um retorno de 9 euros por cada euro investido”.

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Roberto Merril é professora na Universidade do Minho Adriano Miranda

Ao PÚBLICO, o mentor do estudo lançado por Francisco Guerreiro, Roberto Merrill, presidente da Associação pelo Rendimento Básico Incondicional Portugal (RBIP), diz que o RBI é uma boa medida porque “é um instrumento eficaz na luta contra a pobreza e, mais do que isso, dá liberdade às pessoas de escolherem a vida que querem”. E acrescenta que o RBI, ao contrário do Rendimento Social de Inserção (RSI), é “incondicional, ou seja, não obriga os cidadãos a procurar emprego ou formação, e não é distribuído em função do agregado familiar”.

Sobre as experiências-piloto que já ocorreram em países como a Alemanha, a Finlândia, os Estados Unidos, o Canadá ou o Brasil, Roberto Merrill sublinha que se verificam “imensos resultados benéficos” nos participantes, como “um sentimento de maior confiança nas instituições, maior sentido de empoderamento, mais autonomia, e melhor saúde”, apontando ainda virtudes na dimensão laboral: “Com o RBI, as pessoas podem mudar para um emprego que corresponda mais às suas ambições ou podem passar de trabalhar a tempo inteiro para part-time, tendo mais tempo para estar com os filhos ou estudar”.

A produtividade seria afectada com o RBI? E como seria pago?

Os críticos ao RBI identificam lacunas na prestação social, como a dificuldade de a financiar e a potencial promoção do desemprego ou de redução na produtividade. Aponta-se a Finlândia como exemplo. O país nórdico adoptou uma experiência-piloto, entre 2017 e 2018, reunindo dois mil cidadãos desempregados com um subsídio mensal de 560 euros. No fim, apesar de relatórios apontarem a uma subida dos níveis de bem-estar, o impacto do RBI na procura de novo emprego foi marginal. Para Francisco Guerreiro, a experiência na Finlândia fracassou porque envolveu apenas desempregados que “já antes recebiam um tipo de apoio social”. “Esperaram que o rendimento acabasse durante os dois anos da experiência e continuaram a sua vida”, diz.

Roberto Merrill refere que, apesar de ter sido “mediatizada como má”, a experiência na Finlândia “correu bem, segundo dizem os cientistas sociais responsáveis pelo projecto”. O docente compreende a ideia de que o discurso da falta de produtividade no trabalho e o aumento do desemprego sejam argumentos utilizados pelos críticos, mas defende que “no debate empírico, os resultados às experiências ao RBI dizem o contrário”. E assinala que “ainda não foi feita uma experiência-piloto de grande escala” que possa incluir não apenas desempregados, mas “pessoas que têm um bom emprego e que com o RBI podiam trabalhar menos e ir viver para o campo, por exemplo”. Só assim, diz, poderia haver “argumentos empíricos para a crítica do RBI”. “De outro modo, a crítica é só especulativa”, acrescenta.

Sobre o financiamento da prestação, Roberto Merrill lembra que em Portugal “não há riqueza comum nem fundo soberano” e que a única forma de pagar o RBI a mais de 10 milhões de pessoas seria a mesma com que se paga “a saúde e a educação”, ou seja, através da “redistribuição da riqueza”. Sendo o RBI universal e distribuído a todos os cidadãos ou residentes legais em Portugal, “os mais ricos pagariam mais impostos e perdiam dinheiro em vez de o ganhar”.

Segundo as contas de Roberto Merrill, o RBI custaria “3,5 mil milhões de euros anuais, cerca de 1,5% do PIB nacional”. “Não é nenhuma fortuna”, defende. Já Francisco Guerreiro assinala que o RBI seria financiado através da extinção das prestações sociais não contributivas abaixo do valor estabelecido para o RBI, argumentando ainda que, “ao nível líquido, uns vão sempre beneficiar mais do que outros”. Aponta também que, em Portugal, há “18 mil milhões de euros anualmente perdidos para a corrupção e 45 mil referentes à chamada economia paralela que podiam ser alocados para o RBI”.

Ainda assim, o eurodeputado diz que “não se pode apenas falar em custos brutos” quando se fala do RBI. “Um dos grandes benefícios de ter um rendimento constante é o de dar estabilidade económica e mental às pessoas. O RBI investe nas pessoas e daria retorno”, argumenta, assinalando que os principais beneficiários da medida seriam os cidadãos das “classes média e média baixa”.

A Europa ainda não estará preparada para discutir o RBI

Roberto Merrill fez parte da iniciativa de cidadania europeia que levou o tema do RBI para a Comissão Europeia em 2013 e Francisco Guerreiro tem o objectivo de recolocar o assunto em discussão no mesmo organismo, mas ambos concordam que o subsídio tem ainda de ser discutido em cada um dos estados-membros antes de entrar em sede única.

De facto, a União Europeia ainda debate a proposta relativa a salários mínimos adequados em cada país. Ao PÚBLICO, a eurodeputada do PCP, Sandra Pereira, diz que até essa proposta da UE “é nefasta” porque atendendo aos indicadores para o salário mínimo europeu 60% da remuneração bruta mediana e de 50% da remuneração bruta média de cada país só traria vantagens para “os grandes patrões em Portugal e na UE”.

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Francisco Guerreiro é eurodeputado Vera Moutinho

Sobre o RBI, a eurodeputada membro da Comissão do Emprego e Assuntos Sociais rejeita a implementação da proposta em Portugal e na UE porque não é a favor de que “o Estado deva entregar um cheque, de igual valor, a cada cidadão e fugir às suas responsabilidades na redistribuição da riqueza e no atenuar das assimetrias socio-económicas”.

Para Francisco Guerreiro, o debate sobre o salário mínimo “não anula o debate sobre o RBI”, mas refere que as instituições europeias e os seus decisores políticos rejeitam discutir a medida porque, acredita, “há um claro receio de que se comprove o benefício do RBI, o que retira a plataforma política a alguns partidos, tanto à esquerda como à direita, que têm as ideias e as respostas do costume”. O eurodeputado defende que as métricas de desenvolvimento humano devem passar a ser “qualitativas e não quantitativas”.

“Ainda continuamos a medir o progresso da sociedade através do PIB e a narrativa política ainda está muito assente no crescimento contínuo. Isso esbarra na ideia de perspectivar uma diferente distribuição da riqueza e de reorganizar o modelo fiscal e o estado social”, diz o ex-PAN.

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