Rússia – Ocidente: o que é feito da indivisibilidade da segurança?
Urge explorar todas as vias diplomáticas que possam travar um conflito bélico na Europa, devendo as Nações Unidas e a OSCE assumir iniciativas rapidamente. Impõe-se uma transformação qualitativa das relações no triângulo Rússia-NATO-União Europeia, em direcção a um mais alto grau de institucionalização, promotor de confiança e estabilidade.
Desde 1945 que não se verificava uma situação tão alarmante e perigosa no continente europeu. Uma invasão da Ucrânia por parte da Federação Russa é a todos títulos inaceitável, um cenário de agressão que é imperativo evitar. Como pode a Rússia, um imenso país plurinacional com uma história e cultura ímpares, justificar o atropelo da integridade territorial e da soberania de estados - algo que permanentemente invoca -, tal como dos princípios do direito internacional inscritos na Carta das Nações Unidas que também ajudou a definir e a consagrar?
O Ocidente não é inimigo da Rússia. Queremos pensar que o inverso continua a ser verdade. Ora, o anúncio do “reconhecimento”, por parte de Moscovo, da independência das autoproclamadas repúblicas de Donetsk e de Lugansk é um desenvolvimento preocupante e pode criar uma situação sem precedentes no continente – uma situação que seria desastrosa para todos os europeus e, na verdade, para o mundo. Esta crise deveria ter sido evitada, e ainda pode ser debelada. Neste sentido, é urgente assegurar pontes de comunicação e de diálogo. Urge, pois, explorar todas as vias diplomáticas que possam travar um conflito bélico na Europa, devendo por maioria de razão as Nações Unidas e a Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE) assumir iniciativas rapidamente.
Uma avaliação cuidada das relações entre a Rússia e as nações europeias – das quais ironicamente também faz parte - obriga a trazer para primeiro plano uma ideia fundamental que aparentemente desapareceu do léxico da política internacional: a de que a segurança internacional é por definição interdependente ou seja, não há segurança de uns sem segurança do outro. Este é um princípio perene das relações internacionais.
Há alguns anos, a convite do MNE, tivemos justamente oportunidade de evidenciar estas ideias numa conferência de diálogo entre a Rússia e a NATO realizada na prestigiada Universidade MGIMO, em Moscovo, em que esteve presente o insigne embaixador de Portugal, Manuel Marcelo Curto. Nela articulámos, em especial, a noção de indivisibilidade da segurança entre a Rússia e o Ocidente, tal como, aliás, no conjunto mais vasto da macrorregião euro-asiática. Não se pode aceitar que ao longo dos últimos meses e anos se tenha perdido de vista este princípio virtuoso na construção de garantias de paz internacional.
Na mesma ocasião tivemos ensejo de sublinhar junto dos nossos interlocutores russos que mais estabilidade e prosperidade na sua fronteira ocidental não pode em caso algum ser considerado um problema para a Rússia. Bem pelo contrário! Neste contexto de extrema volatilidade é imperioso recuperar igualmente a ideia de segurança co-operativa, um conceito que presidiu à nova OSCE no marco da cimeira de Budapeste de 1994, que procurou com esse inovador formato co-operativo assegurar e promover uma efectiva lógica de paz através da construção de consensos. Por isso, numa era de comunicação instantânea e de maior centralidade das cidadanias e das sociedades civis em cada país, as instituições internacionais não podem - perante sinais ameaçadores - ficar expectantes e inactivas, devendo assumir o papel determinante.
Do ponto de vista do estudioso atento das dinâmicas internacionais contemporâneas, o referido princípio da indivisibilidade da segurança – que é um conceito crucial – aponta para uma transformação qualitativa das relações no triângulo Rússia-NATO-União Europeia em direcção a um mais alto grau de institucionalização. A institucionalização produz, normalmente, dois efeitos: reduz a incerteza e estabiliza expectativas. Forjar um novo quadro mais institucionalizado pode contribuir para alterar a percepção negativa russa dos alargamentos da NATO e da UE, em termos de Nós-Eles, numa lógica endogrupo-exogrupo, para simplesmente Nós, Europeus. Daí que um salto qualitativo institucional encerre um maior potencial de comprometimento da Rússia como parceiro imprescindível na construção de um modelo mais realista e eficaz de segurança europeia. Tal pode traduzir-se em maior densidade no diálogo e num maior envolvimento de uma Rússia - sempre orgulhosa - na implementação de conceitos inovadores e na própria doutrina de segurança da NATO, nomeadamente perante o espectro de ameaças comuns, por exemplo na luta contra a pirataria e face ao terrorismo islâmico.
A potência russa é, aliás, um importantíssimo factor de estabilização no grande espaço ex-soviético da Ásia central, onde os países ocidentais não têm meios substanciais de intervenção. Na busca de uma imagem simbólica diríamos que uma maior institucionalização poderia ser o rito de passagem para a redefinição do relacionamento da Rússia com a NATO. Assim, é fundamental retomar a lógica do Conselho NATO-Rússia formado em 2002, recuperando o que se designou, a partir de 2004, o modelo 19+1 (dezanove membros da NATO mais a Rússia) - agora em termos de conselhos a 31 (os actuais trinta membros da NATO mais a Rússia) - ultrapassando a mentalidade de “soma nula”, e a política de confronto e de escalada armamentista que marcaram as relações entre os países ocidentais e a Rússia soviética durante a Guerra Fria.
Deve sublinhar-se que a decisão de estabelecer o Conselho NATO-Rússia (CNR) - que substituiu o Permanent Joint Council criado em 1997 - foi tomada após os ataques de 11 de Setembro de 2001 com base na necessidade de empreender acções coordenadas, nomeadamente no âmbito da ONU. A crise de Setembro de 2001 espoletou um élan para um diálogo mais intenso, e o CNR configurava não só uma nova plataforma de diálogo mas também um instrumento-chave que pode - e deve - permitir alcançar avanços reais nas parcerias com os países ocidentais. Mas, em rigor, o Conselho NATO-Rússia de 2002, segue-se ao Acto Fundador de 1997, à Parceria para a Paz de 1994 e ao Forum for Consultation de 1991 que apontavam já para o princípio compartilhado da indivisibilidade da segurança na vasta área euro-atlântica.
Este é, na nossa perspectiva, um conceito com importantíssimo potencial na linha de segurança co-operativa, que terá de ser doravante mais densa e alargada. Os referidos acordos de 1991, 1994, 1997 e 2002 representaram então marcos importantes, encerrando um considerável potencial de impacto sistémico que deve ser novamente explorado. Para lá das manifestações recorrentes de posturing e de declarações intempestivas de vária ordem, sempre expectáveis na política internacional, aqueles conceitos poderiam possibilitar dinâmicas mais racionais, produtivas e apaziguadoras. Perante o quadro de retórica inflamada, que lembra tempos sombrios do passado, os europeus do lado de cá e do lado de lá reclamam isso.