25% de utentes sem médico de família, o elefante na sala
A falta de médicos de família, tal como a falta de professores, é um problema que veio para ficar, à semelhança do que se passa noutros países.
Na Administração Regional de Saúde Lisboa e Vale do Tejo (ARS LVT), em dezembro de 2021 mais de 25% dos utentes não tinham médico de família, segundo os dados do site transparencia.sns.gov.pt. Esta percentagem varia entre 11,9% no ACES (Agrupamento de Centros de Saúde) Lisboa Norte e 30,5% no ACES Sintra.
A Reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) introduziu distorções que passados 16 anos continuam por resolver, assistindo-se a um agravar das assimetrias e da desigualdade no acesso aos CSP. O grupo de Reforma dos CSP e o Ministério da Saúde foram fazendo vista grossa ao elefante no meio da sala, neste caso os utentes que não cabem nas USF (Unidades de Saúde Familiar), centros de saúde com limite de utentes inscritos e que são transferidos para as UCSP (Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados), centros de saúde sem limite de número de utentes inscritos, para onde são canalizados os utentes excedentários das USF, mas que ficam quase sempre sem médico de família.
Acontece que a abertura de uma nova USF raramente inscreve a totalidade dos utentes da UCSP que lhe deu origem e as UCSP vão-se reduzindo em número mas aumentando a sua taxa de utentes sem médico, alguns oriundos de USF de outras freguesias. Existem UCSP com mais de 75% de utentes sem médico de família, como a UCSP Moscavide (91%), a UCSP Agualva (81%) ou a UCSP Loures (79%).
A falta de médicos de família, tal como a falta de professores, é um problema que veio para ficar, à semelhança do que se passa noutros países, desde o Reino Unido ao Canadá. A reforma em simultâneo de um elevado número de médicos de família é também um problema há muito identificado. É por isso lamentável a falta pensamento estratégico e de apresentação, ao longo destes anos, de propostas pragmáticas não só pelo Ministério da Saúde, mas também pelo Grupo de Reforma dos CSP e pelas associações profissionais.
Agora que entramos num novo ano, seria fundamental mudar a contratualização dos Centros de Saúde, passando dos actuais indicadores para uma contratualização que responda às reais necessidades da população, como a resposta dos Centros de Saúde às situações agudas não graves que “entopem” as urgências hospitalares, resposta equitativa aos utentes sem médico de família, resposta domiciliária aos utentes de baixa mobilidade, entre outras.
O aumento (eventualmente temporário) das listas de utentes na ARS LVT, com redefinição de prioridades e delegação de tarefas noutros profissionais, é uma solução óbvia, tendo já sido implementada com sucesso noutros países. O verdadeiro problema não são as listas de utentes extensas, pois raramente ultrapassarão os 2000 utentes/médico, número a partir do qual a OMS diz ser difícil manter qualidade de resposta. Os maiores problemas são o subaproveitamento dos enfermeiros e a contratualização desajustada que a Administração Central dos Sistemas de Saúde (ACSS) mantém preguiçosamente há anos, perpetuando um modelo que não provou melhorar os resultados de saúde. As plataformas informáticas que servem de base ao trabalho dos médicos de família e enfermeiros (Sclinico e SAPE) são também uma fonte obstrução e de baixa produtividade.
É triste assistir à crónica lamentação sobre a dimensão das listas de utentes, cujo aumento se tornou um assunto tabu, em vez de uma oposição construtiva mas firme a uma contratualização desadequada.
A fase pós-crítica da pandemia está a colocar desafios extraordinários na recuperação da resposta às situações não covid-18, que se foram acumulando. A gestão muito criteriosa dos recursos humanos e financeiros é fundamental, o que implica uma redefinição corajosa das prioridades ajustada a cada região e mesmo a cada Centro de Saúde.