O partido médio
O antigo eleitorado do PSD já não lhe pertence e o novo que o deveria substituir migrou para outras paragens. Afinal, o que é que o PSD tem a propor que não esteja já representado no intervencionismo estatal do PS, no liberalismo da IL ou no autoritarismo do Chega?
Um marciano desce à terra e depara-se com países cujos governantes são eleitos pelo povo. Candidata-se e perde. Depois pergunta: “Não fui eleito, posso mudar de povo?” A resposta é: “Não”. O povo muda, é certo, mas não é pela mão dos políticos. Ou bem que o povo é a base eleitoral da democracia — e os partidos respondem com o seu programa às preocupações e interesses dessa base — ou passam a ser os políticos a escolher os eleitores. Chamam-lhe ditadura.
Ora, quando uma dirigente de um partido democrático que acaba de perder eleições diz que foi o povo que falhou, algo vai mal. É uma reacção de outro planeta que não o da democracia. Mas é também um sintoma de um partido cuja indefinição ideológica passou de trunfo a obstáculo. O seu target é agora um eleitorado mais estrito e impressionável por um estilo mais tribunício — mesmo que seja em alemão — e cultor da frugalidade típica de um líder que até na derrota não endivida o partido. José Pacheco Pereira tem razão: é um “partido médio”. Mas será ainda assim um partido de poder?
A pegada governativa dos socialistas é gigante. O PS ganha pela segunda vez uma maioria absoluta que o PSD nunca conseguiu sozinho no último quarto de século. Quando chegarmos ao fim desta legislatura, os sociais-democratas terão governado apenas quatro dos últimos 20 anos. Costa ultrapassará os dez anos de governação de Cavaco. Desde 1995 que os sociais-democratas não conseguem governar sem ser em coligação.
Mas não é só isso que faz do PSD um partido médio. Há uma patologia. Com a maioria de Sócrates o PSD enveredou por um discurso de protesto, com uma agenda definida essencialmente por oposição à do PS. Isso deu resultados assim que este entrou em crise — e é normal que qualquer partido veja no colapso de outros uma oportunidade. Outra coisa muito diferente é fazer disso uma identidade. O Governo de Passos Coelho vangloriava-se sobremaneira de ser um bombeiro de crises alheias, esquecendo que com isso esvaziava o partido de uma agenda inventiva e visionária. A austeridade, que com Passos foi de necesse malum a summum bonum da governação, secou o partido da sua criatividade que entretanto a IL chamou a si. Até Moedas percebeu isso ganhando Lisboa com uma agenda positiva que oportunamente soube demarcar do passismo.
Mas no quadro nacional, o PSD deixou há muito de ser a tartaruga gigante dos anos 90, com uma agenda própria e com grande capacidade de arrasto. Tornou-se numa tartaruga de aquário, mais musculada e irrequieta, mas ao mesmo tempo mais imóvel do ponto de vista do alcance da sua mensagem e da sua capacidade mobilizadora.
Também é verdade que o centro se deslocou. O “povo”, de facto, não é já o mesmo — o que explica o anacronismo da ideia de que “o povo falhou”. O que acontece é que o povo que o PSD idealiza como “seu” já não existe. Os mais velhos não votam PSD; os mais novos também não. O antigo eleitorado do PSD já não lhe pertence e o novo que o deveria substituir migrou para outras paragens. Afinal, o que é que o PSD tem a propor que não esteja já representado no intervencionismo estatal do PS, no liberalismo da IL ou no autoritarismo do Chega? Estará o PSD condenado a reconstituir-se como mera manta de retalhos destes três modelos de sociedade?
Imaginemos o cenário — em espelho com a actual maioria absoluta do PS — em que o PSD obtém uma maioria absoluta: elege mais deputados do que o rival directo em todos os distritos; esvazia os partidos à sua direita; e vai ainda buscar votos ao centro-esquerda. Mais, consegue esse resultado após duas legislaturas em minoria parlamentar e confrontando a maior crise sanitária do século. Não conseguem imaginar pois não? Pois não. E o problema é esse. É que o PSD não consegue fazer à direita o que o PS fez à esquerda. A saber: apropriar-se das ideias dos partidos à sua direita para mobilizar um eleitorado mais vasto.
Pelo contrário, enquanto o PS “esvaziou” a esquerda, o PSD foi “esvaziado” pela sua direita. Portanto, o risco de radicalização que o cenário de uma “traquitana” — vamos chamar assim a um potencial acordo interpartidário de direita — coloca não é simétrico ao de uma “geringonça”. Não me refiro à equiparação moral e “civilizacional” que muitos sugerem entre os pólos da esquerda e da direita do espectro — de resto pouco aplicável e completamente a-histórica no caso português. Refiro-me, isso sim, ao custo político da aproximação do PSD a agendas e/ou partidos revisionistas e anticonstitucionais. Este é sempre muito mais elevado do ponto de vista da alienação de uma base suficiente para o eleger. À esquerda essa perda não ocorreu; à direita ela já terá começado. E aqui reside a assimetria entre PSD e PS.
As “crises” de liderança do PSD na última década partem sempre de um pressuposto falso: a de que a transformação do PSD num partido médio se deve a factores internos. Nada mais errado. O demérito das lideranças do PSD, a existir, esteve apenas na incapacidade de antecipar uma reconfiguração política que é completamente externa ao partido: a mesma que tornou o PS num partido hegemónico; que matou a democracia cristã; e que permitiu a ascensão da IL e do Chega. O povo não falhou ao PSD; o povo mudou. Esta reconfiguração entalou o PSD entre um centro e uma direita que estão agora completamente territorializados. Apesar da dívida moral para com a esquerda que colocou Costa no poder, a sua maioria absoluta instala o PS num centro alargado. Esta espargata é inimitável pelo PSD porque este encontra, à sua direita, duas frentes ideológicas em clara ascensão e hermeticamente fechadas em ideologias pouco reconquistáveis pela social-democracia.
Não há portanto sinais de que o PSD possa voltar a ser um partido catch-all. Com votações sempre abaixo dos 30 por cento, os sociais-democratas não apresentam um decréscimo substancial face às eleições ganhas por Passos Coelho em 2015 (se isolarmos os votos no PSD do conjunto da PàF). Mas o PSD nunca cresce para lá desse limiar desde Barroso, e encontra agora a dificuldade acrescida de ser muito mais difícil coligar-se à direita sem o CDS. Enquanto os partidos à sua direita continuarem a crescer e o PS reclamar para si o europeísmo das “contas certas”, não há nenhuma razão para pensar que o PSD não seguirá o mesmo caminho do CDS. Entretanto, como partido médio do sistema, resta-lhe desenvolver esforços no sentido de uma “traquitana manca” que exclua o Chega e aporte à agenda liberal da IL as políticas sociais inspiradas pelo personalismo cristão que sobra da morte do CDS. Para sobreviver terá de usar o seu capital de experiência política, e abraçar causas que a esquerda ainda não monopoliza por completo, para se coligar com um partido que continua oportunamente amador — por enquanto — e sem qualquer agenda social. Catch a few and pretend they’re all será o lema do PSD para a década.