Eleições 2022: a realidade é real?
As sondagens não foram “culpadas”, mas foram, inequivocamente, modeladoras dos resultados eleitorais. Esta “corrida de cavalos” foi contínua e extenuante ao longo do tempo, e isso produziu efeitos de segunda ordem. Definitivamente, o veneno está na dose.
Após duas semanas de maratonas de debates televisivos, a campanha oficial ainda acelerou mais, acabando por se transformar numa verdadeira “corrida de cavalos” a galope. A par da óbvia contenda entre partidos, decorreram outras duas disputas de elevada intensidade: entre canais de informação e entre sondagens de opinião.
Apesar de visível no ecrã, a rivalidade entre canais pode ter sido menos evidente do que a política; no entanto, quem esteve mais atento percebeu a pressão que o modelo “CNN a la portuguesa” colocou sobre os seus mais diretos concorrentes, influenciando o modelo da atenção concedida. Esta foi, claramente, uma cobertura centrada no comentário e não na reportagem.
Por sua vez, as sondagens, sendo uma das estratégias usadas nesta luta pelas audiências, foram muito mais do que isso. A quantidade de estudos de opinião produzidos e a sua presença contínua nos mais variados media – sob a forma de resultados, perguntas jornalísticas e comentários –, tornou-os centrais na campanha, levando a um estreitar da cobertura em torno de dimensões de estratégia e de jogo, como se de uma “corrida de cavalos” se tratasse. Isto produziu uma bipolarização mediática, sendo a bipolarização das polémicas uma das suas expressões mais evidentes.
Para além de serem um dos temas dominantes da campanha e uma arma de disputa por audiências, as sondagens tiveram uma interferência ainda mais profunda na contenda eleitoral.
Há muito que as campanhas políticas são estruturadas de acordo com a lógica mediática. O recurso a essa lógica visa alcançar o máximo de visibilidade, importante para assegurar exposição contínua nos media, captar a atenção dos eleitores e produzir impacto nas sondagens. Estas alimentam-se de convicções, mas, também, cada vez mais de percepções. E, nesta era da mediatização da política, é difícil destrinçá-las: na esmagadora maioria das vezes, as pessoas julgam reagir à política, quando, na verdade, estão a responder à sua mediatização.
A este jogo de percepções, devemos juntar o papel do jornalismo, também ele influenciado pelas sondagens, e que, com as suas previsões, vai co-tecendo a narrativa eleitoral. Por sua vez, essa cobertura gera múltiplos conteúdos que saem dos seus lugares de produção para serem disseminados e reenquadrados, sucessivas e múltiplas vezes, em partilhas, gostos e comentários nas redes sociais mais visíveis – como o Facebook ou o Twitter –, mas também nas encriptadas, onde muita conversa política e para-política constrói percepções. A circulação digital alimenta-se de um patchwork de notícias completas, meias-notícias, debates, entrevistas, sondagens (fidedignas e pseudo), rumores, piadas, semiverdades, semimentiras, mentiras absolutas, memes e demais conteúdo político, quase-político e não-político.
Esta “obra” coletiva regida pelas sondagens não pode ser confundida com o rigor científico com que são feitas: a maioria é conduzida no respeito absoluto pelos critérios científicos, dentro dos seus condicionalismos, e há muito bom jornalismo a analisar estes dados. Mas as sondagens não são um instrumento preditivo: traduzem intenções e não comportamentos. E, apesar de não poderem antecipar a realidade, contribuíram para a sua construção. Pensemos no voto útil: as sondagens não foram “culpadas”, mas foram, inequivocamente, modeladoras dos resultados eleitorais. Esta “corrida de cavalos” foi contínua e extenuante ao longo do tempo, e isso produziu efeitos de segunda ordem. Definitivamente, o veneno está na dose.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico