Existe um modo de vida europeu que está sob ameaça?
O Tratado da União Europeia evidencia que o projecto europeu assenta em valores comuns como a liberdade, a democracia e o Estado de Direito, princípios que estão em risco em países membros da União.
São 27 Estados-membros, 24 línguas oficiais e cerca de 448 milhões de habitantes. A União Europeia (UE) é uma organização motivada por vontades políticas e económicas, com uma complexa diversidade cultural, mas assente em valores comuns, alicerçados numa identidade europeia.
É este o argumento justificativo do Tratado da União Europeia, que, no artigo dois, destaca que a União se “funda nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem”, incluindo das “minorias”. Esses valores, prossegue o Tratado, “são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo”.
Mas, no meio de tanta diversidade, esses valores representam mesmo um património comum que resulta num modo de vida europeu? “Mesmo dentro de Portugal, temos modos de vida diferentes, mas aquilo que nos dá uma identidade comum a nível europeu é a partilha de um conjunto de princípios que regem a nossa relação interpessoal, a nossa relação pessoal”, defende ao PÚBLICO Miguel Poiares Maduro, professor universitário e especialista em direito europeu.
Para Poiares Maduro é este o ponto crucial: mais do que uma “identidade cultural” ou uma “identidade histórica, “que também existem”, são os princípios sobre a organização social e política que permitem aos europeus ter uma “base comum”.
Esses princípios assentam na “tolerância” de cada um escolher o seu próprio modelo de vida. “Paradoxalmente, um dos aspectos mais comuns da identidade europeia é a ideia de tolerância e respeito pela liberdade de cada um poder assumir modos de vida diferentes”. De acordo com o académico, essa identidade foi promovida pela “mobilidade que sempre existiu” entre os países da Europa e que hoje “existe cada vez mais”.
O professor do Instituto Universitário Europeu de Florença, que em Dezembro organizou um dos painéis de cidadãos da Conferência sobre o Futuro da Europa, destaca até que os princípios não se ficaram pela abstracção e ganharam força de lei, uma vez que próprio Tribunal de Justiça da UE refere as “tradições constitucionais comuns” a vários países, “desenvolvidas ao longo dos anos”, devido às “concepções de democracia comuns”.
Identidade europeia é uma realidade
Segundo os últimos dados do Eurobarómetro (Novembro de 2021) a identidade europeia é uma realidade para a maioria dos cidadãos, uma vez que mais de metade dos inquiridos (56%) se identificaram como europeus, 28% não responderam e 14% responderam negativamente.
Para Paulo Rangel, eurodeputado eleito pelo PSD, há “muito de comum” nos países europeus, o que é “evidente para quem vê de fora”. “Visto de dentro olhamos para as diversidades todas, mas de fora vê-se muita coisa em comum”.
O social-democrata coloca a tónica na história como “principal factor de identidade” dos europeus. “A nossa identidade é a nossa memória”, acrescenta, revisitando a história, com início na “Grécia” e em “Roma”. Há ainda o factor identitário da “matriz cristã”, que, mais do que a fé, assenta na cultura. O eurodeputado dá um exemplo concreto: “Em Helsínquia, Atenas ou Lisboa toda a gente ouviu falar do presépio e do menino Jesus. É uma coisa comum. Na China ou Índia, isso não existe”.
Ou seja, os europeus são pessoas “muito diversas”, mas que “cresceram a ouvir as mesmas histórias”. “A ideia do humanismo, da primazia da pessoa, é uma coisa muito europeia, que explica que tenhamos chegado à ideia de direitos humanos e do valor da vida”.
Do percurso histórico até às consequências actuais, o vice-presidente do Parlamento Europeu, Pedro Silva Pereira, reeleito na semana passada, também não duvida de que o projecto europeu assenta numa “partilha de valores”, como os da “democracia”, do “Estado de direito” e dos “direitos humanos”.
Se esses valores parecem óbvios para quem os dá como adquiridos, o eurodeputado do PS realça que são princípios que “fazem parte de uma velha tradição cultural e política europeia” e que são a “razão de um trajecto político comum”. Um trajecto que teve origem em ambições específicas: “o projecto europeu é também uma resposta ao desafio da paz, de prosperidade partilhada e uma promoção de valores de comuns a uma Europa dividida e dilacerada por guerras terríveis”.
Hoje, considera-se que o objectivo da paz foi alcançado, apesar dos conflitos a leste, mas tal não significa que os tais valores europeus não estejam em risco dentro da própria União. “Há valores que estão sob ameaça mesmo dentro da UE, em particular o Estado direito e o respeito pelos valores humanistas europeus”, assinala o socialista que foi ministro nos XVII e XVIII Governos nacionais.
Agir para proteger os valores europeus
Num dos relatórios da Conferência sobre o Futuro da Europa sobre as propostas dos cidadãos para o projecto europeu, lê-se que um “grande grupo de participantes” está preocupado com o estado da democracia e exige que a UE assegure o respeito pelo Estado de direito e a protecção dos valores fundamentais.
Das propostas que chegam de todo o espaço da União através da plataforma digital, há quem defenda a criação de uma Constituição Europeia para “definir claramente um conjunto de valores europeus fundamentais” ou a criação de mecanismos mais “apertados” para garantir o Estado de direito.
“A UE com certeza precisa sempre de fazer mais. O primeiro combate é, no entanto, de tipo político”, considera Silva Pereira, defendendo a necessidade de “construir maiorias políticas que possam resolver o problema” do não-cumprimento do Estado de direito em países como a Polónia e a Hungria.
O caso daqueles dois países não é novo. A Comissão Europeia já solicitou a activação do artigo sete do Tratado da UE devido à situação polaca, enquanto o Parlamento Europeu fez o mesmo em relação à Hungria. Contudo, o cumprimento do artigo que prevê sanções para os países incumpridores do Estado de direito esbarra sempre na inércia do Conselho Europeu.
Por isso, Pedro Silva Pereira destaca a criação do “regulamento de condicionalidade” no acesso aos fundos comunitários em caso de violações do Estado de direito, que tem em vista, sobretudo, a aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Um instrumento de pressão importante”, assinala o socialista.
O regulamento, contudo, está em análise no Tribunal Europeu de Justiça. “Esperamos uma decisão favorável do tribunal que confirme a validade desses instrumentos”, afirma Silva Pereira, insistindo, ainda assim, que “nada dispensa uma luta política pelos ideais europeus” e considerando decisiva a forma como a UE vai responder ao “desafio” do acolhimento de refugiados.
Além daqueles dois países, onde existe um “ataque sistemático” à “independência judicial” e à “liberdade de expressão”, Paulo Rangel realça os “problemas” de Malta e da Roménia, onde a “corrupção tem um papel endémico”; da Eslováquia, onde jornalistas são assassinados; ou até mesmo da Dinamarca, que tem “comportamentos totalmente atentatórios” contra os refugiados.
“Assim como para entrar na UE é necessário que um Estado cumpra regras da democracia, também para estar na União é preciso continuar a cumprir”, afirma o social-democrata, pedindo, por isso, “uma posição mais clara da União” sobre violações dos direitos fundamentais.
Rangel enaltece também o papel de pressão protagonizado pelo PRR, apesar de criticar o “acordo tácito” entre a Comissão e o Conselho que remeteu o regulamento para as instâncias judiciais. “Ainda assim, no caso de PRR os fundos ainda não chegaram nem à Hungria nem à Polónia”.
Parece existir unanimidade sobre a necessidade de agir sobre aqueles países, mas Miguel Poiares Maduro atenta para “sensibilidade” política necessária na protecção do Estado de direito. Uma “intervenção da UE, sendo uma intervenção de fora, pode ser vista como uma intromissão na democracia nacional”.
Contudo, o professor universitário, antigo ministro no governo de Passos Coelho, alerta para que as violações dos direitos fundamentais são um problema da União e não apenas dos Estados-membros em causa – e justifica com dois motivos. Um deles é que, no caso de não existirem tribunais independentes, é o “próprio direito da União” que é desrespeitado, uma vez que cabe aos tribunais nacionais aplicá-lo. O outro motivo é o risco de ter eurodeputados eleitos em pressupostos poucos democráticos a legislar para toda a UE.
“Se não existir democracia dentro de um Estado-membro não é apenas essa democracia nacional que está em causa. É a própria democracia europeia”, conclui Poiares Maduro.
Este artigo faz parte do projecto A Europa que Queremos, apoiado pela União Europeia.
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