Pandemia ameaça deixar cicatrizes nas crianças e jovens durante décadas
A perda nas aprendizagens das crianças foi substancial e o país não lhe está a dar a devida atenção, segundo Susana Peralta, co-autora do relatório Portugal – Balanço Social 2021. Na leitura dos indicadores, a economista chama ainda a atenção para os jovens que a pandemia “chutou” para fora do mercado de trabalho.
As crianças e os jovens acabados de entrar no mercado de trabalho serão os grupos mais fustigados pela pandemia, a médio e longo prazo. As primeiras por causa das perdas nas aprendizagens, os segundos porque demorarão a recuperar do solavanco sofrido na sua inserção laboral. A conclusão é da economista Susana Peralta, co-autora do relatório Portugal – Balanço Social 2021, que traça o retrato do país após o primeiro ano da pandemia.
No ano de 2020, o risco de pobreza tinha aumentado 2,2 pontos percentuais, para 18,4% da população, conforme tinha já demonstrado o inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE) aos rendimentos e condições de vida, realizado já em 2021, mas com base nos rendimentos do ano anterior. As mulheres, as pessoas com 65 ou mais anos de idade e as famílias com crianças (sobretudo as monoparentais) e os desempregados foram os grupos mais fustigados pelo agravamento da pobreza, o que também não constituiu surpresa num cenário em que, num único ano, surgiram 230 mil novos pobres em Portugal, fazendo aumentar para 1,9 milhões os portugueses obrigados a viver com menos de 554 euros por mês.
Para Susana Peralta, porém, o país está em condições de recuperar rapidamente deste efeito imediato da pandemia na sua situação social. “Os níveis de consumo e do PIB [Produto Interno Bruto] deverão rapidamente voltar aos níveis de 2019 – não sei quando, mas num prazo razoavelmente rápido, também por causa das políticas governamentais de apoio às empresas”, começa por situar a investigadora da Nova School of Business and Economics, para quem as cicatrizes mais difíceis de fazer desaparecer serão as deixadas pelo SARS-Cov-2 nas crianças e nos jovens, “cujo potencial corre o risco de sair fortemente limitado”.
No caso dos jovens recém-ingressados no mercado de trabalho, “a grande máquina de protecção social que foi o layoff pouco os ajudou”. “Foi uma medida muito útil e boa, foi, aliás, adoptada em toda a Europa, mas o layoff proíbe as empresas de despedir pessoas; não as obriga a renovar contratos nem a manter relações com os prestadores de serviços, vulgo ‘recibos verdes’ e ‘falsos recibos verdes’”, refere Peralta.
Desde o início da pandemia e até Outubro de 2020, mais de 100 mil empresas tinham entregado pedidos de layoff, abrangendo 1,4 milhões de trabalhadores. Entre Janeiro e Abril de 2021, 57 mil empresas tinham recorrido àquele mecanismo, para um universo de 299 mil trabalhadores. Mas, num mercado laboral dual como o português, que se reparte “entre um grupo de trabalhadores extremamente protegido e outro muito mais fragilizado”, os jovens foram os primeiros a ser “chutados” para fora do mercado de trabalho, por serem também os mais abrangidos por contratos de trabalho temporários e vínculos precários.
Se compararmos Agosto de 2019 com o mesmo mês de 2021, as inscrições dos jovens adultos, entre os 25 e os 34 anos, nos centros de emprego tinham triplicado. Nos primeiros oito meses do ano passado, “em média, esta faixa etária teve um aumento de 67% de desempregados face a 2019”, lê-se no relatório. “Isto vai deixar cicatrizes difíceis de curar porque sabemos, a partir de estudos feitos a propósito de crises anteriores, que quando os jovens têm um começo coxo, aos trambolhões, os efeitos sentem-se a médio e longo prazo”, conclui Peralta.
Perdas dos alunos “esquecidas”
Do lado das crianças, já se sabia que as mais afectadas pelos dois grandes períodos de encerramento das escolas foram as provenientes dos meios económicos mais desfavorecidos. Os autores deste balanço social (além de Susana Peralta, também Mariana Esteves e Bruno P. Carvalho) recordam que a perda generalizada de competências ficou devidamente demonstrada pelo próprio Instituto de Avaliação Educativa, a partir de um estudo de aferição amostral, aplicado entre 14 e 21 de Junho de 2021, a 49.097 alunos, que mostrou atrasos significativos sobretudo na aritmética.
“Os dados mostram perdas inequívocas sobretudo a Matemática e na gramática, ou seja, nas disciplinas ou matérias que têm uma componente mais formal e em que o ensino em casa se mostrou menos eficiente do que o ensino na escola. E, como os dados que temos não nos permitem aferir assimetrias, podemos admitir que, nalgumas escolas, as perdas possam ter chegado aos 60%, porque não é segredo nenhum que os alunos beneficiários da Acção Social Escolar foram os mais afectados”, interpreta Susana Peralta, cujas preocupações decorrem do facto de “não se estar a dar a devida atenção” ao problema.
Em 2020, recorde-se, mais de uma em cada quatro crianças vivia em casas com telhado, paredes, janelas e chão permeáveis a água ou apodrecidos (o que representa um ligeiro crescimento face a 2019) e 11% em casas sem aquecimento adequado (um decréscimo face a 2018 e 2019). Dos zero aos 17 anos, a taxa de pobreza aumentou nesse ano de 19,1% para 20,4%, o que deixou mais crianças sem condições para aprender em casa.
E, entre 2020 e 2021, os alunos portugueses foram, no contexto da União Europeia, os que estiveram obrigados a permanecer mais tempo em casa – 96 dias no caso dos jardins-de-infância, 87 dias no 1.º ciclo e 92 dias no 3.º ciclo e secundário, segundo um levantamento feito pela OCDE. Logo após o primeiro confinamento generalizado, um estudo realizado pelo Centro de Economia da Educação da Faculdade de Economia da Universidade de Lisboa tinha já previsto que a recuperação das aprendizagens poderia demorar “dois a mais períodos escolares”. Depois disso, as escolas voltariam a fechar, entre 21 de Janeiro e 8 de Fevereiro do ano passado, isto sem contar com o recente prolongamento das férias de Natal por mais uma semana.
“Previa-se alguma dotação dos recursos humanos nas escolas, para tornar possível as ‘tutorias’, isto é, a criação de grupos pequenos de recuperação de aprendizagens, mas estamos a entrar no terceiro ano da pandemia e não se sabe se contrataram ou não porque ninguém fala disso”, acrescenta. A investigadora refere-se ao plano de recuperação de aprendizagens, apresentado em Junho de 2021, e que previa mais de 3300 docentes e 900 milhões para recuperação de aprendizagens. Em Novembro, recorde-se, o Ministério da Educação garantiu que já tinham sido colocados, na contratação inicial do ano lectivo, os referidos 3300 professores.
“Estamos no meio de uma campanha eleitoral e ninguém se mostra preocupado com as perdas substanciais dos nossos alunos naquelas matérias que têm uma componente mais formal”, reforça ainda a economista, para concluir que, ao contrário do consumo e do PIB, aqui a recuperação será mais lenta: “Ou temos políticas muito mais ambiciosas dirigidas a crianças e jovens, ou vamos pagar a factura durante décadas...”