A Política de Habitação entre o Estado e o mercado
A propósito da proposta de Programa Nacional de Habitação.
Mesmo para quem parta de uma posição crítica favorável à escolha política que subjaz à aprovação da Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) e à posterior aprovação da Lei de Bases da Habitação (LBH), é difícil não mostrar desapontamento com a proposta do Programa Nacional de Habitação (PNH) que esteve, até ao passado dia 15 de Dezembro, em discussão pública. Esse desapontamento acumula-se com aquilo que se passou desde a aprovação da NGPH, em 2018, e que podemos definir como uma diferença colossal entre a ambição política traduzida nos documentos e os parcos recursos financeiros mobilizados para lhe dar corpo nos sucessivos orçamentos gerais do Estado.
Ao limitar-se a descrever os programas e políticas já aprovadas e os objectivos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a proposta de PNH parece abdicar de assumir o seu papel enquanto peça última da nova arquitectura das políticas públicas de habitação.
A necessidade de dar uma resposta às famílias numa situação de grave carência habitacional – em 2018 foram identificadas pelo IHRU 25.672 famílias nessa situação – levou o Governo a assumir, em Abril de 2018, o objectivo de eliminar todas as situações de grave carência habitacional até ao 25 de Abril de 2024, quando comemorarmos os 50 anos da revolução. Sabemos hoje que o diagnóstico inicial sobre o número de famílias numa situação de grave carência habitacional era profundamente deficitário, mas não sabemos quantas famílias se encontram nessa situação. A proposta pouco acrescenta ao diagnóstico feito quatro anos atrás, nem nada diz sobre os impactos que a crise pandémica teve na privação severa de habitação daqueles que por ela foram mais duramente afectados. Sabemos que 26 mil famílias serão realojadas até 2026 – com o recurso a 1211 milhões de euros do PRR –, mas não sabemos o que acontecerá às restantes, nem quando. Não sabemos, na verdade, quantas são.
Para garantir o acesso à habitação aos que não tinham resposta por via do mercado, o Governo propunha-se aumentar o peso da habitação com apoio público na globalidade do parque habitacional de 2% para 5%, o que representava somar 170 mil fogos aos 120 mil existentes. Apontava este objectivo como uma meta alcançável no médio prazo, que quantificava em oito anos. Em 2026, esse objectivo deveria ser atingido.
Se olharmos para a proposta do PNH, verificamos que no ponto 2.2 do seu Anexo se refere estarem disponíveis 774 milhões de euros do PRR para construir, até Julho de 2026, cerca de 6800 fogos. Podemos concluir, recorrendo ao preço médio por fogo, que serão necessários cerca de 19,350 mil milhões de euros para passarmos a ter um pequeno Parque Público de Habitação para arrendamento a preços acessíveis. Esta verba é superior em cerca de 39% à totalidade dos fundos que Portugal vai receber de subvenção no âmbito do PRR e é da mesma ordem de grandeza do esforço que foi imposto aos portugueses, nos últimos dez anos, para resgatar o sistema financeiro. Se mantivermos este nível de financiamento necessitaremos, para termos mais 170 mil fogos, de 125 anos. Não parece razoável estabelecer um horizonte tão longínquo, nem parece que se possa estar a pensar num prazo desta dimensão, quando na proposta se assume a expectativa de obter resultados da NGPH, “num tempo longo”, ainda que sem concretizar uma data.
É na magna questão do financiamento que reside a maior fragilidade da política de habitação. É por isso que faz todo o sentido repensar a relação que o Estado português tem estabelecido ao longo de décadas com o mercado em torno do processo de urbanização e, por consequência, em torno da política de habitação. Não se conseguirá resolver o problema da habitação sem trabalharmos sobre essa relação.
A proposta do PNH nada acrescenta ao que já se sabia quer da NGPH quer da LBH e, relativamente a esta última, não explora um dos aspectos cruciais que ela abordou. Refiro-me ao que a LBH estabelece no art. 16.º, na alínea h, sobre a articulação com a política de solos, e, sobretudo, ao que determina o seu art. 34.º no ponto 6: “As mais-valias resultantes das alterações de uso do solo proporcionadas por planos territoriais ou operações urbanísticas podem ser redistribuídas nos termos da lei ou afectas a programas habitacionais públicos”.
O reconhecimento da geração das mais-valias urbanísticas pelo processo democrático de aprovação dos planos territoriais está consagrado na legislação portuguesa desde que foi aprovada, em 2014, a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e do Urbanismo. No cap. II da Lei, no art. 64.º, alínea 6, reconhece-se que “ (…) os planos territoriais de âmbito intermunicipal ou municipal fundamentam o processo de formação das mais-valias fundiárias e definem os critérios para a sua parametrização e redistribuição”, sendo que o art. 66.º determina na sua alínea a) que, “a afectação social de mais-valias gerais atribuídas pelo plano territorial de âmbito intermunicipal ou municipal é um tipo de redistribuição de benefícios e encargos.”
Uma análise do desenvolvimento urbano ao longo dos últimos 30 anos permite concluir que a política de habitação conduzida pelo mercado – aquela que existiu no nosso país durante esse período - serviu sobretudo como alibi para justificar um processo de urbanização ao mesmo tempo intensivo e extensivo. O objectivo foi o de capturar as mais-valias urbanísticas que se geraram pela classificação do uso dos solos – uma classificação realizada pelo Estado, recorde-se - associadas à expansão dos perímetros urbanos, e, mais recentemente, pelas mudanças de uso associadas à reabilitação urbana. Os 19,35 mil milhões são uma pequena gota de água no conjunto das mais-valias capturadas pelo mercado.
Se a proposta do PNH assume no ponto 3 do Anexo, que “ (…) é preciso repensar o papel do Estado, nomeadamente recuperando mecanismos de intervenção directa (…)”, então não basta discutir a relação entre o Estado e o mercado. É necessário ser capaz de discutir a forma de actuação do Estado e, em particular, a forma como se articulam o Estado regulador e o Estado produtor. Há uma omissão do Estado, acerca da natureza plural da sua intervenção que colocou o processo de desenvolvimento urbano, e em consequência a política de habitação, nas mãos do mercado. Que omissão foi essa? Um antagonismo assumido entre o Estado regulador e o Estado produtor, quando deveria existir articulação e complementaridade entre eles. O Estado produtor é, no contexto português, uma vaga reminiscência do período fordista. Os seus vestígios remontam às últimas experiências de intervenção directa na produção de habitação social, que datam do início da década de oitenta do século passado. O Estado regulador procedeu à liquidação dos últimos vestígios do Estado produtor, alienando parte do stock público de habitação social. Na verdade, o Estado demitiu-se de concretizar a sua função social. É neste contexto que a afectação social das mais-valias deve ser entendida e precisa de ser discutida e concretizada.
Precisamos de uma melhor proposta do PNH. Só assim será possível criar as condições para que exista uma política de habitação, promotora dos direitos constitucionais e dos objectivos da NGPH. Uma política diferente daquela que nos últimos 30 anos tem sido a nossa e que nos conduziu a um triste lugar na cauda do índice Europeu de Exclusão Social Associado à Habitação, publicado em 2016: 22.º entre 28 países.