Um milhão de emigrantes insubstituíveis no séc. XXI
Não conhecemos nenhum outro país ocidental no mundo contemporâneo em que, sem nenhuma guerra a acontecer, se tenha perdido esta fatia gigantesca da sua mais fértil e produtiva população
Este artigo apresenta dados quantitativos que comprovam que nunca dantes navegámos uma saída da população ativa tão alta, incluindo famílias inteiras, sem reposição pela natalidade que nunca esteve tão baixa. Estamos perante uma tragédia nacional ímpar que, em vez de desvalorizada, deve ser admitida e resolvida: mais de um milhão de emigrantes saídos e a continuarem a sair de Portugal neste século XXI, sem substituição à vista. Isto quando ainda nem sequer completámos o primeiro quartil do século.
Os artigos sobre emigração geralmente não são escritos por emigrantes, e começam, mal, por desvalorizá-la, afirmando que “historicamente somos um país de emigrantes.” Do ponto de vista deste autor que é emigrante, tais artigos, além de terem poucos dados quantitativos, não são empáticos para a multidão de milhares como nós que, pelas alturas do Natal, quando regressam brevemente para logo sair de Portugal, veem os filhos a chorarem desesperados por mais um ano pela frente sem ver os avós e por talvez para o próximo ano já nem sequer conseguirem comunicar com eles em português.
Vivemos na Grã-Bretanha onde existem 170.000 portugueses emigrados, segundo dados oficiais do Census UK 2021, divulgados no final do ano que agora findou. Em 2001 havia aí apenas 36.000 portugueses. Portanto, desde o início deste século, os emigrantes portugueses em território britânico aumentaram 500%. Mais do dobro desses portugueses, 87.000, são mulheres, incluindo em idade fértil a contribuírem para a natalidade do Reino Unido, não de Portugal. Este número de portugueses em território britânico é tão alto que ao nosso lado, com pouco mais emigrantes que nós, está, por exemplo, o Bangladesh, um país muito maior.
Infelizmente, não é só no Reino Unido que a emigração massiva, incluindo mulheres e crianças, saída do nosso pequeno Portugal no século XXI, se verifica.
Desvalorizar esta combinação anormal de alta emigração com baixa natalidade como historicamente normal é uma tentativa de, perante este drama nacional sem paralelo, enterrar a cabeça na areia como as avestruzes. A propósito, até na Austrália vivem agora mais de 17.000 portugueses, quando no século passado eram mil. Estamos, portanto, a falar de um aumento superior a 1700% de emigrantes portugueses, só em mais um país entre os muitos para onde os portugueses emigram no século XXI.
Segundo os dados mais recentes disponíveis da Pordata, nos últimos 14 anos, de 2007 a 2020, emigraram 1.060.442 de portugueses. Para percebermos o impacto desta perda, isto equivale a cerca de 20% da população no ativo, incluindo a fatia mais jovem, que poderia contribuir para reverter a descida da natalidade. Por exemplo, ainda esta semana soubemos pelo PÚBLICO que numa só classe profissional, os enfermeiros, nos dois últimos anos emigraram 2143, a um ritmo anual que corresponde a 33% dos que finalizam o curso.
Indubitavelmente, um valor assim tão alto de emigrantes não substituídos pela natalidade nem mitigado por nenhum outro fator não tem paralelo na nossa história quantificada. Segundo a mesma Pordata, o único outro pico de emigração, que chegou perto do atual, também durante 14 anos seguidos, ficou aquém do milhão, com 908.402 emigrantes entre 1961 a 1974 No entanto, este número foi logo em seguida significativamente atenuado pelos 600 mil retornados que regressaram a Portugal vindos das ex-colónias. Reveladoramente, em 2020, emigraram mais do dobro dos portugueses que emigraram quando começou a guerra colonial: 68.209 em 2020 versus 33.526 em 1961. Tal emigração incluía mais de 100.000 refratários e suas famílias.
Para mitigar ainda mais essa emigração, além do posterior regresso dos retornados, nesses 14 anos nasceram quase dois milhões de portugueses a mais do que nos 14 anos recentes, rejuvenescendo então a população. A natalidade funcionava como substituição. Ora essa substituição já não acontece. Nos últimos 14 anos, em comparação com 1961, a taxa geral de fecundidade (que mede a fertilidade individual e ligada à natalidade) desceu de quase 100 nascimentos por ano por 1000 mulheres em idade fértil para menos de 40 nascimentos. Menos 60% de bebés a nascerem por ano, tendência confirmada pelo índice sintético de taxa de fecundidade que caiu de 3.2 em 1961 para 1.4 em 2020.
O resultado desta dupla tragédia é, além da deterioração da economia, um ritmo galopante de envelhecimento da população. Segundo os dados mais recentes dos Censos portugueses de 2021, há quase o dobro de idosos em relação ao número de jovens: 18 idosos por cada dez jovens. Isto quando ainda no princípio do século havia a mesma percentagem de idosos e jovens, e no século passado mais jovens que idosos (sete idosos por dez jovens nos últimos censos do século XX em 1991).
Não conhecemos nenhum outro país ocidental no mundo contemporâneo em que, sem nenhuma guerra a acontecer, se tenha perdido tal fatia, gigantesca, da sua mais fértil e produtiva população. A Moldávia foi o único outro pequeno país europeu que a partir de 1991 viu sair mais de um milhão de cidadãos, mas devido a guerras separatistas e ao colapso da União Soviética que era o principal destino das suas exportações. Todos os outros países europeus que até ao século passado tiveram grande emigração, por exemplo a Irlanda, desenvolveram-se economicamente e pararam assim a emigração. Em Portugal não houve guerras nem choques fora do nosso controlo. Há, pois, poucas hipóteses de explicação para a emigração atual lusa que não passem pela incapacidade de desenvolvimento significativo da economia a consequente ausência de boas oportunidades de emprego e bons salários.
O único esforço legislativo feito pelo Governo nesta área foi o programa Regressar. Não há valores precisos, mas este programa, desde que foi implementado em 2019, apenas conseguiu fazer regressar, no máximo, cerca de 1000 portugueses por ano, num total de cerca de 3000. Um número minúsculo perante os já referidos 1.060.442 de emigrantes perdidos recentemente, sempre a crescer com cerca de 70.000 a saírem por ano. Metaforicamente, estamos perante o uso de uma colher de chá legislativa para tirar água de um navio gigantesco a afundar-se.
A conclusão é que os decisores políticos ignoram estes valores tão expressivos da emigração que, aliados à baixa natalidade, podem comprometer ainda mais a nossa economia e demografia. Urge promover reformas profundas do Estado, da justiça, da fiscalidade e da economia para refortalecer a democracia, promover o desenvolvimento económico e recuperar a diáspora perdida durante o século XXI e que não foi substituída pela natalidade.