O isolamento e as eleições
O Governo tem a obrigação de garantir que quem quer votar o possa fazer com segurança. Isso não passa por suspender por um dia medidas de saúde pública.
Perante o aumento de infecções por SARS-CoV-2, ouvimos nos últimos dias vários especialistas sublinharem a importância de quebrar cadeias de transmissão. O isolamento profiláctico tem sido apresentado como uma das principais armas.
Temos a nosso favor o facto de estes casos não originarem, na sua maioria, manifestações graves de doença, o que significa menor impacto nos internamentos e na letalidade. E podemos assim entrar numa nova fase: cada pessoa que recebe um diagnóstico de infecção deve ficar em casa, fazer autovigilância e identificar os seus coabitantes.
De resto, o número de dias de isolamento baixou de dez para sete e a Direcção-Geral da Saúde (DGS) alterou o conceito de contacto de alto risco – o que significa que, a partir de agora, o universo de pessoas em isolamento encolherá. Até os coabitantes de infectados deixam de ter de se isolar, se estiverem vacinados com a terceira dose.
O consenso em torno destas decisões é alargado. A palavra de ordem é auto-responsabilização — e é mais um passo para “normalizar” a nossa vida, tendo em conta as elevadas taxas de vacinação que temos e a presença de uma variante dominante menos perigosa.
Contudo, nesta quarta-feira ficámos a saber que o Governo pediu ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República que se pronunciasse sobre se a restrição à liberdade de circulação que decorre de um isolamento decretado pelas autoridades de saúde prevalece sobre a liberdade de voto a 30 de Janeiro.
Dito de outro modo: alguém que está infectado, e, logo, isolado, não pode sair de casa para ir ao supermercado. Ou para ir a um funeral de um familiar. Mas será que pode sair de casa para ir votar nas eleições legislativas deste mês?
Ou se revêem as regras do isolamento, e elas têm de se basear numa avaliação técnica do risco, ou decretar a sua suspensão por um dia, mesmo sendo esse um dia essencial na nossa vida democrática, descredibilizaria as medidas que daqui para a frente se considerassem essenciais para defender a saúde pública. Fica ainda por saber se essa suspensão não teria o efeito perverso de levar os não-infectados, sobretudo os mais frágeis, a optarem por ficar em casa em vez de irem votar.
O Governo tem a obrigação de garantir que quem quer votar o possa fazer com segurança, esteja ou não confinado. E foram várias a sugestões que ouvimos ao longo do dia: reforçar a recolha do voto no domicílio; criar um sistema extraordinário de voto por correspondência; apelar à participação em grande escala na modalidade do voto antecipado em mobilidade... Já congelar por momentos as regras sanitárias em vigor seria, como diz o vice-presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, “um precedente perigoso”.