Abaixo as paralipses e o bom senso!

Políticos, habitantes do espaço público, comentadores de vária espécie, treinadores de futebol adoram paralipses. Em suma: quase todo o português gosta de paralipsar aqui e ali.

Presta-se pouca atenção ao hábito muito portuguesinho do recurso à paralipse. (Não tratarei aqui do seu uso literário.) A arte de fingir que não se fala sobre um assunto, falando sobre ele. Não deixa de ter graça, concedo. Em estando atento à fácies de quem salpica o discurso com paralipses, o espectáculo pode revelar-se humorístico.

Políticos, habitantes do espaço público, comentadores de vária espécie, treinadores de futebol adoram paralipses. Em suma: quase todo o português gosta de paralipsar aqui e ali.

Vejamos exemplos típicos de paralipsadores.

Depois de um jogo de futebol, o treinador comenta:

— Eu tinha prometido não falar mais sobre arbitragem e vou cumprir. E hoje é um dia em que se falasse sobre arbitragem… — faz uma pausa para exibir o esgar de profundo conhecedor do mundo, o rosto da espécie a-mim-nunca-me-enganam —, teria muito, muito para dizer.

Num debate sobre X, o paralipsador anuncia:

— Tínhamos combinado falar exclusivamente sobre X, e assim farei. Não irei sequer comentar a vergonha do que se passa com Y. Em relação a X…

Passemos ao segundo truque de que pouco se fala. Perante a discussão de ideias no espaço público ou privado, no momento em que o falante não consegue contra-argumentar ou definir o que pensa, ou quando a conversa desliza para um terreno em que uma das partes quer esconder a sua ignorância, há um costumeiro truque português: o refúgio no “bom senso”.

Aqueles que (quase) nunca têm opinião (preferíveis aos que têm opinião sobre tudo, espécie em vias de crescimento exponencial) declaram, contentinhos:

— É preciso bom senso.

Ou:

— É tudo uma questão de bom senso.

Ou:

— Eu, nessa matéria, defendo o bom senso.

E quando é que não defendes, pá? Quem tem o monopólio do bom senso? Quem define o bom senso? Como se concebem políticas com base no bom senso? O que é bom senso para uns não o é para outros, eis uma obviedade.

O dissenso da ortodoxia dominante é bom senso? Por vezes? A História está cheia de casos de heresias (à época) que hoje consideramos dogmas.

É fastidioso ouvir “bom senso” como forma de encerrar debates, de não se comprometer pairando no empíreo dos ungidos do bom senso, de colar a expressão ao evidente e transbordante bom senso do seu emissor. Como o bom senso habita sempre aquele que o profere, nunca poderemos chegar a uma unanimidade quanto ao que é o bom senso. Nem sequer a um consenso (diferente de “unanimidade”). O “bom senso” é, bastas vezes, um ornamento vácuo, uma fraude argumentativa, uma derradeira tentativa de matar o diálogo, ganhando-o, uma dissimulação de ignorância, um enfado, uma putativa auto-sinalização de virtude, uma arma (sem munição) que quase todos temos no bolso e que é forçoso desmascarar.

Em matérias em que há antagonismos inconciliáveis, é superlativamente absurdo ouvir essas estafadas duas palavrinhas juntas. O bom senso de um dos lados é o “mau senso” para o outro lado, e vice-versa.

O superabundante “bom senso” pertence à categoria de expressões que nada dizem, mas que conseguem iludir e eludir o interlocutor. Miguel Esteves Cardoso (M. E. C.) alertou-nos para muitas delas, em textos que não ganharam rugas. Evoco-o a propósito da expressão “dentro do género”, que M. E. C. tão bem apanhou.

— O filme é bom?

— Dentro do género.

— Ele/ela é giro/a?

— Dentro do género.

— Gostaste da aula?

— Dentro do género.

O problema deste tipo de expressões, que devemos caçar sem átomo de piedade, é que conseguem, nada dizendo, calar o interlocutor, que, muitas vezes, nem enxerga ter ficado exactamente na mesma.

Há ainda expressões curiosas, porquanto perifrásticas e inúteis. Voltando a M. E. C., uma delas é: “Se quer que lhe diga, não sei.” Quando perguntamos algo a outro, aquele “se quer que lhe diga” é caricato (não deixando de ser delicioso). Pior: termina sempre com uma desfeita. Parafraseando o escritor e cronista deste jornal, imagine o leitor que responderíamos analogamente a quem nos perguntasse se lhe daríamos um cigarro: “Se quer que lhe dê, não dou.”

À data em que escrevo, há técnicas mais nefastas, insidiosas e frequentes (peço desculpa de não escrever “recorrentes”) de discutir do que as aqui inventariadas? Sem dúvida. Sucede que sobre elas há muita coisa escrita. Seja a falácia do espantalho, em que um interlocutor defende A, e o seu oponente distorce A até A ser A7 ou B ou C ou D, de modo que seja mais fácil refutar o argumento, agitar a turba e ganhar a contenda; seja o permanente rótulo em lugar da argumentação — tenho um amigo que, quando critica o Politicamente Correcto e certas políticas identitárias nas redes sociais, não raro, recebe o apodo de “fascista” (uma vez, até de “nazi”). Por outro lado, quando critica as políticas neoliberais, mandam-no para Cuba e a Coreia do Norte. E isso leva-me a três observações finais. Primeira: como deveríamos ser parcimoniosos com as palavras que desejamos que tenham força. Segunda: como palavras que vão ganhando uma amplitude semântica gigantesca se podem tornar ocas, ou seja, se certas palavras significam tudo, daqui se segue que não significam nada (veio-me logo à cabeça “evento”, que até com o sentido de “experiência” já se encontra: “eventos traumáticos”, por exemplo!). Terceira: como quem defende, com critérios largos, a criminalização do discurso de ódio (defini-lo é difícil e perigoso) quase sempre o pratica e quase sempre o circunscreve ao ódio do outro lado da barricada.

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