Douro, uma celebração com desafios inadiáveis
O que hoje corre maior risco na paisagem duriense é a sua gente, que é também o suporte das actividades económicas, da vida social das cidades, vilas e aldeias, da preservação do ambiente e do património.
Vinte anos depois da classificação da paisagem vinhateira do Alto Douro como Património da Humanidade, impõe-se uma celebração festiva que congregue todos os durienses, os que ainda aqui vivem e resistem à tentação de partir e os muitos mais que já partiram e estão espalhados pelo mundo, os agentes da vinha e do vinho, da agricultura e do ambiente sustentáveis, do turismo, da cultura e do património. É tempo de brindarmos pelo estatuto honroso que colocou a região na lista mundial de bens raros. Mas a festa não deve limitar-se a “hossanas” e foguetório. Pode e deve ser também uma oportunidade de reflexão sobre a melhor forma de honrarmos, colectivamente, a memória dos homens e das mulheres que, ao longo de séculos, construíram e reconstruíram esta paisagem, uma herança fabulosa que implica o compromisso de a preservarmos, para a transmitirmos revalorizada às gerações futuras.
Um trunfo que não podemos desperdiçar
O reconhecimento da UNESCO destacou a excepcionalidade, a autenticidade e a integridade da “paisagem cultural evolutiva e viva” do Douro, como obra humana milenar para produzir vinhos generosos em condições ambientais difíceis. Esse reconhecimento trouxe valor acrescentado às actividades económicas da região, desde a vitivinicultura ao turismo. Mais do que nunca, desenvolveram-se projectos exemplares de exploração vitivinícola, com ganhos notáveis na qualidade dos vinhos do Porto e DOC Douro, sobretudo nas quintas, que se tornaram também espaços de acolhimento turístico de excelência.
Concretizaram-se diversos programas no campo da cultura, na criação de novas unidades museológicas, a começar pelo Museu do Douro e pelo Museu do Côa, na construção ou recuperação de teatros e outros equipamentos culturais. Abriram novas unidades de hotelaria e restauração, algumas de grande qualidade, um pouco por toda a região. E verificou-se a rápida expansão da navegação fluvial, com programas diversificados que atraem um número exponencial de visitantes. De menos de 150 mil passageiros nas embarcações de turismo em 2011 passou-se a mais de 1,6 milhões em 2019. Dir-se-ia que o Douro passou a dispor de um trunfo forte, com capacidade para atrair gente e recursos, promover o seu desenvolvimento integrado e ultrapassar o paradoxo de ser um território pobre e deprimido, apesar da imensa riqueza aqui produzida.
A região continua a perder forças
No entanto, tudo o que se fez, e foi imenso em diversas áreas, não teve eficácia suficiente para resolver, ou minorar, os problemas estruturais da região, os desequilíbrios sociais e territoriais, a perda de valor dos vinhos para muitos produtores e a falta de harmonização dos interesses da produção e do comércio, a escassez de emprego qualificado, a fraca valorização do trabalho, a fragilidade demográfica e da vida social, a ausência de centros de decisão e a fragmentação e falta de articulação institucional.
A realidade fria dos números obriga-nos a pensar no que falhou, se não quisermos aceitar a síndroma da fatalidade. Nos últimos vinte anos, o Douro perdeu mais de 20% da sua população, uma sangria demográfica maior do que a do grande surto emigratório da década de 1960, com a agravante de ter um impacto mais imediato nos já elevadíssimos índices de envelhecimento, no abandono da pequena viticultura e na desertificação das aldeias. Já não se trata apenas de perdas nos concelhos mais periféricos. Atingem os municípios com maior centralidade, como a Régua, que na última década sofreu uma quebra da população residente superior a 15%.
Os números das explorações vitícolas da região demarcada, fornecidos pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, reflectem perdas humanas brutais. Em apenas dez anos, entre 2010 e 2020, a área de vinha diminuiu apenas 4%, mas o número de viticultores desceu quase 50%, com consequências visíveis na vida social das aldeias e na oferta de mão-de-obra.
Outros indicadores socioeconómicos, como os índices de poder de compra ou o PIB per capita, continuam a colocar a maioria dos concelhos da região muito abaixo da média nacional e entre os mais pobres do país, para já não falar das grandes regiões vitícolas europeias, com as quais o Douro se deveria comparar.
“O Douro não pode esperar mais!”
Há vinte anos, o grande desafio da região era criar condições para fixar a sua população jovem e atrair recursos e novos habitantes, de forma a gerar empregos qualificados, densificar a vida social e aproveitar as enormes potencialidades do território, para um desenvolvimento sustentável e inclusivo. O manifesto “Douro: o futuro não pode esperar mais…”, subscrito por muitos durienses e pela maior parte dos autarcas, em 2005, apontava prioridades e caminhos para uma estratégia regional integrada. Numa altura em que a paisagem duriense era reconhecida como património de valor universal, sonhávamos ser possível transformá-lo em recurso gerador de desenvolvimento.
Falhámos esse compromisso para o futuro. A situação actual traduz o fracasso. Faltou uma estratégia regional adequada, não importa se por falta de visão do poder central ou dos poderes locais. Multiplicaram-se planos e estudos, mas sem eficácia, devido à fraca vontade política, à ausência de coesão regional e de energia cívica.
Manteve-se, afinal, a débil atractividade deste território para novos habitantes. No mundo global e digital em que vivemos, as oportunidades do teletrabalho poderiam tentar muitos jovens a instalar-se em vilas ou aldeias do Douro, mas a região continuou, em grande parte, infoexcluída, com fraquíssimo acesso às redes de comunicação, para já não falar na ausência quase absoluta de redes de fibra óptica.
Ao mesmo tempo, encerraram escolas, tribunais, postos de CTT, agências bancárias e outros serviços, incluindo estruturas de articulação e dinamização de actividades de enoturismo, como o Solar do Vinho do Porto, na Régua, e a Rota do Vinho do Porto.
Deslocalizaram-se instituições aqui sediadas, como a Turismo Douro ou o Instituto de Navegabilidade do Douro. Agruparam-se freguesias e fingiu-se uma descentralização pífia, sem qualquer impacto na formação de centros de decisão e no reforço do tecido institucional da região. O problema da Casa do Douro, longe de se resolver, transformou-se numa trapalhada sem sentido nem utilidade para os viticultores.
Ao desinvestimento na rede ferroviária sucedeu a sua amputação sistemática, com o encerramento das linhas do Corgo e do Tua, a par do constante adiamento da modernização da linha do Douro e da reposição do troço Pocinho-Barca de Alva.
Por outro lado, alguns indicadores aparentemente positivos, como os do turismo fluvial, devem fazer-nos reflectir. A quem interessa o turismo de massas, a acumular lixo e poluição no rio, com dezenas de autocarros a invadir o Pinhão e outras zonas? Mais não é, necessariamente, melhor…
Além disso, num território classificado como Património Mundial, é essencial aprofundar o conhecimento sobre o seu património. Mas, para muitos concelhos, continuamos a não dispor de estudos e inventários arqueológicos e etnográficos.
Simultaneamente, cometeram-se barbaridades, contra as regras definidas pelo Plano Integrado de Ordenamento do Território e outra legislação em vigor, por vezes com o apoio, a cumplicidade ou a incúria dos poderes públicos. Vimos o que se passou com a construção das barragens do Tua e do Sabor. Ou com a implantação de torres de alta tensão da REN, em plena área classificada. Veremos o que se irá passar com o empreendimento projectado para os terrenos da Milnorte, sobre a albufeira de Bagaúste… Para o cidadão comum do Douro, em contrapartida, qualquer pequeno projecto pode ser o início de uma longa saga burocrática. Aparentemente, o Douro conta pouco para quem aqui vive e trabalha, menos do que para os grandes investidores, para os turistas, “para inglês ver”…
A paisagem cultural não existe sem as pessoas
O que hoje corre maior risco na paisagem duriense é a sua gente, que é também o suporte das actividades económicas, da vida social das cidades, vilas e aldeias, da preservação do ambiente e do património. A paisagem cultural não existe sem as pessoas que a criam, a valorizam, a habitam e dela usufruem.
Será possível fugir à fatalidade da desertificação humana e da anemia da vida social na região? Talvez. Se houver vontade colectiva, empenhamento cívico e políticas centrais e locais que coloquem as pessoas no topo das prioridades. Todos os durienses, os que aqui vivem e os da diáspora, envolver-se-ão na salvaguarda, valorização e gestão do património, da cultura e das tradições da sua terra. Mas terão de sentir que o reconhecimento mundial da paisagem em que se integram não serve apenas para lhes impor novas regras mas também para melhorar o seu nível de vida, estimular a criação de empregos, valorizar o seu trabalho e gerar condições que garantam o seu futuro e o dos seus filhos.
Quando isso acontecer, a festa será de arromba…