Mau princípio é o verbo.
Celebra-se hoje, 3 de Dezembro, o que nos países de língua oficial portuguesa se chama Dia Internacional da Pessoa com Deficiência. Tem sido cada vez mais recorrente entre activistas autistas em contexto lusófono a defesa da ideia de que autismo é deficiência, contrariando a tendência de o apresentar apenas como diferença de base neurológica, neurodivergência, para a qual muito contribuiu a crescente importância da Neurologia, face às faltas cometidas pela Psiquiatria na sua ânsia de patologizar a diferença e/ou a resistência, de que se podem queixar particularmente as mulheres, as pessoas racializadas, as que integram a comunidade LGBTQIA+ e, entre outras, certamente, as autistas. Não só recuso a palavra deficiente como considero que activistas que, seguramente com a melhor das intenções, à palavra “deficiência” têm recorrido entram em automática contradição com as ideias que advogam.
A primeira contradição resulta de se afirmar que autismo é deficiência e dizer depois preferir a denominação pessoa com deficiência a deficiente – o que eu compreendo, face ao significado da palavra (já lá vou) – e simultaneamente autista a pessoa com autismo. Se autismo fosse deficiência, a lógica obrigaria a que escolhessem autista e deficiente ou pessoa com deficiência e pessoa com autismo. Ao iniciar esta exposição perante alguém da comunidade cujo trabalho muito valorizo e por quem tenho estima pessoal, logo me foi perguntado se as pessoas com aquilo a que já se chamou autismo clássico não seriam deficientes.
Daqui decorre a segunda contradição, uma vez que não só há muito foi afastada a ideia de que o autismo em si ou por si só é deficiência intelectual como o próprio DSM-V (actualização de 2013), apesar dos seus problemas, ao acabar com o diagnóstico de síndrome de Asperger e recusar designações de alto e baixo funcionamento ou desempenho, veio reiterar isso mesmo. Se fossem neurotípicas, as crianças estudadas por Leo Kanner teriam provavelmente sido apenas rotuladas com a chamada deficiência intelectual. As estudadas por Hans Asperger, apesar das semelhanças comportamentais que partilhavam com as primeiras, apresentavam inteligência média ou acima da média, sendo muitas consideradas superdotadas entre aquelas que se diagnosticaram a partir daí. Mesmo considerando a quantidade não ignorável de pessoas que haverá por identificar, estima-se que existam bem mais na segunda condição do que na primeira. Alguns especialistas, entre os quais Tony Attwood, sugerem mesmo que o autismo corresponde à configuração neurológica tendente a tornar-se dominante ao longo da evolução humana que se adivinha, teoria que não só me parece altamente especulativa como potencialmente irrelevante face ao colapso ambiental a que uma mulher autista mediática, cujo comportamento é também posto em causa por muita gente, tem dado grande atenção.
Prefiro o termo autista a Asperger, entre outras razões, porque aquilo a que aqui procedo não constitui um esforço de distanciamento das pessoas ditas deficientes, mas de aproximação. Na verdade, esta ideia de autismo enquanto deficiência decorre da emergência do social model of disability, teoria pela qual se defende que a sociedade constrói a deficiência através da forma como atende a várias diferenças – se quisermos, que a sociedade lida com essas diferenças de forma deficiente. Sendo algumas delas invisíveis, mas nem por isso menos socialmente hostilizadas, conceptualizou-se a ideia de invisible disability, abarcando, por exemplo, o autismo e a hiperactividade. Tomando por base o modelo, no sentido de despatologizar estas neurodivergências e de as definir enquanto expressão de diversidade humana, Judy Singer cunhou o termo neurodiversidade. Contudo, apesar de apresentadas como tradução uma da outra, porque utilizadas em língua inglesa e portuguesa, respectivamente, para referir as mesmas condições, disabled e deficiente são palavras com origens etimológicas e significados diferentes.
O significado original de disability, remontando ao século XVII, pode ser traduzido para algo como incapacidade aos olhos da lei, o que vai de encontro ao modelo defendido, ao contrário de deficiência, que significa falta, lacuna, imperfeição. Para mais, enquanto o termo disabled permite a pergunta by what/who? e convida à resposta que o modelo defende – by society –, deficiente remete a lacuna para a pessoa, pelo que alguém que se diga deficiente e defensor daquilo que se traduziu para modelo social da deficiência está a contrariar inadvertidamente o modelo que diz defender. De resto, os teóricos que o conceberam visavam também substituir de vez uma palavra comummente utilizada em língua inglesa e que consideravam ofensiva, handicapped, bem como distinguir disability de impairment… (desabilitado ecoa aqui pela sua similaridade com a palavra anglófona, embora lhe sejam dados outros usos).
Já me sugeriram que queer é um vocábulo que teve também um primeiro significado ofensivo e foi depois embandeirado pela respectiva comunidade, podendo acontecer o mesmo com deficiente. Porém, os primeiros significados que se lhe conhecem contam cerca de meio milénio de anos e podem ser traduzidos para algo como estranho, peculiar ou excêntrico (o que, como autistas bem saberão, não é necessariamente bom ou mau), só tendo sido usada para agredir pessoas da dita comunidade a partir do século XX, sendo que entre estas se encontram algumas que a recusam por considerarem que carrega uma carga injuriosa ou porque acreditam ter sido, de alguma forma, desbaratada depois da sua reapropriação. A palavra deficiente, pelo contrário, é ofensiva à partida quando aplicada a pessoas, até porque continua a ser utilizada diariamente para outros fins, dado o seu significado, algo que não sugiro dever deixar de acontecer.
O meu ponto é o seguinte: se muito diz do capacitismo da sociedade portuguesa o facto do líder da oposição ao Governo se dar ao desplante de dizer que a gerigonça está numa cadeira de rodas ou de, por tudo e mais alguma coisa, se acusarem e defenderem governos e partidos de serem autistas, também em nada lhe será alheio nosso contentamento com as palavras lusófonas aqui discutidas. As palavras jamais se desligam da construção da realidade e é precisamente em função da minha simpatia pelo social model of disability que as recuso, não só para mim enquanto autista, como para todas as pessoas que até aqui as adoptaram e queiram agora uma, em língua portuguesa, que lhes/as sirva melhor. Talvez possamos até inventá-la.