Uma sociedade justa e solidária onde não é crime maltratar animais?
Carta aberta aos conselheiros do Tribunal Constitucional
Exmos Senhores Conselheiros,
Confrontados que fomos em 2014 com a criminalização dos maus tratos e do abandono de animais de companhia, todos nós ficaríamos muito mais tranquilos se a palavra “animais” constasse do texto da nossa Constituição. Porém, o dever de nos abstermos de provocar sofrimento dos animais não depende, necessariamente, e salvo melhor opinião, de novo processo constituinte.
Não foi, contudo, essa a opção tomada pela maioria dos Conselheiros do Tribunal que foram chamados a pronunciaram-se sobre a conformação constitucional do art.º 387.º do Código Penal (na versão de 2014) no âmbito do chocante e já famoso caso da cadela esventrada a sangue frio pelo seu detentor e das suas crias abandonadas vivas num caixote do lixo. Ponderadas e medidas todas as consequências de uma decisão nesse sentido e apuradas todas as possibilidades doutrinárias já disponíveis na literatura, certamente que, de todas as vias interpretativas possíveis, a dos Senhores Conselheiros em maioria não foi, com todo o respeito, a melhor.
Foi no século XIX que se começou a desenhar a moderna conceção ocidental daquilo que entendemos hoje como “proteção dos animais”. Pioneira neste caminho e impulsionada pelos valores da época vitoriana, Inglaterra confronta-se com os paradoxos morais resultantes dos escritos de Charles Darwin e da relevância que os animais passaram a assumir. O país dividiu-se entre o avanço da ciência às custas da experimentação científica em seres vivos e o ascendente movimento antivivisseccionista que se começou a sentir, mormente, em relação aos animais domesticados. A teoria darwiniana sobre a origem comum das espécies teve um impacto inesperado: se por um lado se baseava em pressupostos que poderiam justificar, pela sua utilidade, a vivissecção, dadas as semelhanças descobertas entre os outros animais e os humanos, por outro lado, também pareciam tornar condenável a utilização dos animais, dadas essas semelhanças connosco.
O homem vitoriano, por analogia à sua própria experiência de dor, poderia agora compreender o quão intensa seria a dor sentida pelos animais, o que impulsionou uma enorme viragem na forma como nos relacionamos com eles, num sentido crescente e irreversível. Na verdade, ainda no século XVII, várias vozes criticariam as lutas de galos e de cães e denunciariam os maus tratos a cães, gatos de rua e animais de pecuária.
A época vitoriana trouxe ainda consigo a moda dos ditos “animais de companhia” junto das classes médias urbanas, levando a que estes animais se “humanizassem” e passassem a ser tratados como membros da família, a quem eram atribuídos nomes, camas próprias, cuidados médicos, reconhecendo-se-lhes uma certa individualidade.
Foi ainda antes do reinado da rainha Vitória que o político e ativista Richard Martin, que viria a ser o pai da primeira legislação de proteção dos animais no mundo, a Lei de Tratamento Cruel do Gado (Cruel Treatment of Cattle Act, de 1822, também conhecida como “Martin’s Act”) defenderia, em juízo, um animal. Esse foi o primeiro julgamento por crueldade contra animais de que há registo e que resultou na condenação de Bill Burns por tratamento “impróprio” do seu burro. Richard Martin exigiu a presença do burro em julgamento, tendo sido crucial para a apreciação da prova.
Em 1876 é aprovada a lei contra a vivissecção que viria a resultar, já em 1906, numa nova lei que visava a total proibição do uso de cães e gatos para experiências científicas. E é sobejamente conhecido o decreto de 1836, assinado por Passos Manuel, onde se lê que as corridas de touros consistiam n’ “um divertimento bárbaro, e impróprio de nações civilizadas”.
Lê-se ainda no decreto: “Semelhantes espetáculos servem unicamente para habituar os homens ao crime, e à ferocidade; e desejando eu remover todas as causas que podem impedir, ou retardar o aperfeiçoamento moral da nação portuguesa: hei por bem decretar, que d’ora em diante fiquem prohibidas em todo o reino as corridas de touros”, numa matriz muito próxima dos valores vitorianos e de uma ética kantiana, e ainda hoje bem espelhados no atual art.º 1.º da nossa lei fundamental, o qual não elenca - nem tem de elencar - todos os comportamentos humanos que fomentem uma sociedade livre, justa e solidária, nem aqueles que a ela se oponham.
Ainda em 1852, o Código Penal Português, nos seus artigos 489.º e 483.º criminalizava a morte ou ferimento de gado e animais domésticos em geral.
Exmos Senhores Conselheiros,
Face ao exposto, parece seguro dizer-se que o valor da proteção dos animais dos excessos humanos ou, se quisermos, da proteção dos próprios humanos da exposição a violência contra aqueles seres, emana do sentir da nossa sociedade há, pelo menos, século e meio.
É também mediante o cumprimento de deveres morais (e jurídicos!) do homem para com os animais que este desenvolve uma sociedade justa e solidária e a sua personalidade ética, uma vez que incumpri-los degrada também a sua própria humanidade. Com a criminalização dos maus tratos e do abandono de animais de companhia, não se está a tutelar diretamente a vida ou integridade física do animal em si mesmas e por si mesmas, concordo. Mas como refere, com muita clareza, Laura Nogueira, “são os princípios de justiça e solidariedade, assim como a própria dignidade da pessoa humana – artigo 1.º da Constituição – que servem de base constitucional para o bem jurídico em questão.”
Se o bem jurídico protegido fosse o bem estar dos animais (o que seria, sem dúvida alguma, mais confortável e desejável para todos: humanos e animais), o julgador teria o sério problema de não o conseguir encontrar expressa ou implicitamente na constituição. Mas o caminho não tem de ser esse.
Exmos Senhores Conselheiros,
O Tribunal Constitucional apresentou uma linha de argumentação que parece obrigar à implementação de uma maior flexibilização e banalização do processo de revisão Constitucional, o que seria especialmente perigoso e impraticável numa era em que tudo muda em segundos e em que a sociedade vai estabelecendo cada vez mais e novas formas de nos relacionarmos uns com os outros. Mas, neste caso, a mudança não começou apenas em 2014, com a lei agora posta em crise. É um valor enraizado há várias gerações e já presente na Constituição de 1976, haja vontade de a ler à luz da História e dos valores sociais vigentes.
Essa espécie de violência é, certamente, uma das formas de a exercer mais cobardes e chocantes de todas, como o são todas as formas de violência contra sujeitos vulneráveis e indefesos.
Esta foi apenas uma decisão, com efeitos para o caso concreto. Os Animais de companhia (infelizmente apenas esses, o que à luz do que a neurociência já nos ensinou acerca da complexidade de muitos outros animais e o próprio Tribunal bem reconhece, é incompreensível), continuam protegidos pela nossa lei penal. Mantenho a fé de que, no futuro, o tribunal abrace uma visão mais moderna daquilo que deve ser uma Constituição em 2021. Mas, pelo sim pelo não, pede-se ao legislador constituinte a melhor atenção para este problema numa próxima revisão