Racismo e linguística: as meninas boas têm “luz”, as negras trevas e inferno
Makas de uma angolana 3 Os movimentos assentes em discursos de oposição, “luz” versus “escuro”, “brancos” versus “negros”, levam à entronização de “privilegiados” versus “excluídos”
No Claustro do Mosteiro dos Jerónimos é possível observar uma escultura em pedra, quinhentista, representando o rosto de um negro marcado nas feições e nas expressões.
A Arte, a Arquitetura e o Urbanismo usam do dom de permitir que, sem grande espaço para dúvidas, se date a presença africana em Portugal na primeira metade do século XV, mais precisamente e segundo o cronista-mor Gomes Eanes de Zurara, a 8 de agosto de 1444, data que marca o primeiro desembarque, em Lagos, no Algarve, de escravos negros vindos da costa africana.
As rotas de escravos criadas pelas invasões territoriais estrangeiras, a sobrevalorização e a fomentação do vício por bens de luxo com que os “luzentes europeus” acenaram aos “escurecidos africanos” conduziram, irremediavelmente, primeiro, à instauração de uma doutrina mercantilista com base nas teorias de compra e venda, de troca e benefício, enfim, da entrada em África de uma organização socioeconómica de matriz ocidental que, em detrimento das atividades de produção como a da caça, da agricultura, da pastorícia, da criação, isto é, da forma organizacional como se regiam os povos bantu, introduziram no útero da África negra uma balança de desigualdades humanas e sociais às quais se seguiram as teorizadas desigualdades étnico-raciais que serviriam de justificação, séculos mais tarde e já no período de ocupação e colonialismo, às teorias de supremacia racial que proliferaram na Europa iluminista.
Com o mote de levar a civilização às partes do mundo que não a conheciam, a Conferência de Berlim, antecedida da Conferência Geográfica de Bruxelas, é a resposta, por um lado, à forte quebra de mão-de-obra resultado da abolição da escravatura e, por outro lado, às necessidades da Revolução Industrial inglesa de acesso a recursos humanos, mas também a recursos materiais numa escala que alavancasse os apetites vorazes de uma nova classe social pronta para construir um novo continente: a América.
O negócio, pura e simplesmente a necessidade do negócio, foi o mote para a inauguração do caminho percorrido pela Europa na construção de uma epistemologia, historiografia e geografia de África que mais não é do que a narração de uma invasão pacificadora. Os pojos do ideal colonialista começam com um encontro linguístico expresso no termo Cartas de Pacificação ou na terminologia também usada pelos polvos Belgas, Ingleses, Franceses, Alemães, Dinamarqueses, Holandeses e outros semelhantes europeus “o fazer penetrar a civilização às restantes partes do mundo” no sentido de “procurar medidas para suprimir os maus tratos dos negros em África”. Colocando a semântica ao serviço da análise histórica, as campanhas de pacificação mais não são do que conjugações do verbo “clarear”, “embranquecer”, levar a “luz” às atormentadas “almas negras” com o objetivo de as aliviar dos males sinónimos de outras construções a partilhar de um mesmo campo semântico, o dos espíritos obscuros, da feitiçaria negra, enfim, a concordância de um discurso que se veste e despe de negro sempre que se trata de exprimir negativamente a realidade.
É por isso tão importante que a História de África, e falando eu no caso da História de Angola em particular, se faça através de uma análise do discurso que produza uma desconstrução das palavras, dos significados e da origem dos enunciados por quem os entoa. Para se compreender os factos é preciso transcrevê-los. Certificar a correta transcrição dos factos passa por tornar as palavras em lugares mais seguros, diminuindo as entoações racistas e desocupando o discurso de metáforas alusivas a uma supremacia “branca”, “áurea”, como se o lugar da “luz” fosse o campo dos “bons” e o lugar do “escuro” fosse o lugar das “errantes almas más, almas negras, almas escuras”. Só a Filosofia, a Hermenêutica e a Análise do Discurso garantem uma desminagem das intrincadas fileiras do ideário da superioridade de uma narrativa “branca”. Continuar a postular até à eternidade um lugar de fala envolto em “luz” é colocar a primeira venda naquele que foi o maior movimento comercial dos finais do século XIX, início do século XX, o colonialismo.
Leopoldo II da Bélgica, reclamando para si o Reino do Congo, enunciou: “O Congo sou eu, eu sou o Rei do Congo.” As palavras são performativas, pelo que a sua análise permite-nos imediatamente reconhecer a forma como os lugares de poder se perpetuam e a forma como quem se apodera deles não se despe dos seus tiques de superioridade. Leopoldo II nunca foi para além da linha do Mediterrâneo, mas isso não o impediu de fazer uso do “eu colonial”.
Há semanas tive a oportunidade de ler, reler e analisar como é que este “eu colonial” se vem replicando no tempo. Numa rede social afirmava-se: “Tenho de facto muito para celebrar pelo que alcancei e continuo a alcançar no meu percurso profissional”. O discurso não podia ser mais honesto e instintivamente uma réplica do discurso do “eu colonial”, como algo “déjà lá”, uma afirmação inconsciente da supremacia herdada na soma de lugares de poder que, se questionada, não hesita por um segundo em hastear a paternidade branca de Leopoldo II da Bélgica expressa no “eu colonial”, no “eu” sucesso, no “eu” glória, no “eu” brilho, no “eu” vitória, no “eu sou a luz e a luz sou eu”.
Depois de ler toda a assertividade das afirmações expressas na rede social e reconhecer a arrogância, a superioridade e a navalha afiada de quem se autoproclama pessoa de “luz” a contrastar com a “pessoa escura” que, para não destoar, até é uma mulher negra, tornou-se para mim por demais evidente a urgência em escrever a História de África a partir de uma nova transcrição, uma transcrição desocupada de quem se afirma como feitoria de lugares de privilégio e glória, e, a prová-lo, enuncia ostensivamente o verbo na primeira pessoa do singular: “Eu sei”, “eu sou”, “eu faço”, “eu alcancei”, “eu tenho de facto sucesso”.
Marx e Engels podem ajudar-nos a compreender os disfarces do “eu colonial” em tempo de “pós-colonialismo” e como a comunidade negra ou, numa leitura marxista-leninista, as forças de produção, muito rapidamente se podem transformar em fontes de exploração. Analise-se o modelo que estes economistas denunciaram, o modelo que o colonialismo explorou e que o neocolonialismo vem reproduzindo de forma repetida e falaciosa. Um conjunto de seres humanos une-se em torno da produção de algo para a comunidade (forças de produção). Rapidamente uma minoria empoderada cria um modelo de gestão que supervisiona o trabalho comunitário agregando lucros para o modelo de gestão e produzindo zero para a comunidade que continua a produzir sob o teto – na terminologia de Marx e Engels sob as “fábricas que engordam o capital” – de um empreendedor, transformando-se assim as forças de produção naquilo que Marx e Engels designaram de forças produtivas, isso é, no modelo capitalista de somar lucros sem produzir absolutamente nada que não seja resultado do esforço dos outros ou por outras palavras das forças de produção.
Marx e Engels podem não ter criado, com o Manifesto Comunista, um modelo económico à prova da ganância de uma minoria ofuscada com a supremacia da “luz”, mas os seus escritos provam que os movimentos assentes em discursos de oposição, “luz” versus “escuro”, “brancos” versus “negros”, levam à entronização de “privilegiados” versus “excluídos”. A história deixa à mostra os papéis daqueles que desde a primeira hora engrossaram as fileiras dos maiores capatazes e algozes na rota da escravatura, a classe mestiça para quem os negros nunca foram irmãos e a quem os brancos sempre aqueceram os lugares de poder pois denunciava-lhes a alva alma serem seus filhos.
Da minha parte deixo a reflexão que não é uma afirmação de “vitória”, nem de “glória”, muito menos um discurso de “sucesso” ao estilo de quem sempre esteve silenciosa e cumplicemente nos lugares de poder, pois que eu deles sempre apartada nunca me deixei ensurdecer, mesmo sabendo que as mulheres negras, as mulheres negras como eu, se querem surdas e mudas, manipuláveis e domesticadas, sem créditos para que outros possam assinar as suas obras.