O talento dentro de um colete-de-forças
Corria o ano de 2007 quando o Belenenses, então treinado por Jorge Jesus, defrontou o Real Madrid no reputado troféu Teresa Herrera. Os lisboetas perderam por 0-1, no último minuto, mas a frase com que o actual técnico do Benfica resumiu o encontro ficou no ouvido: “Fomos mais equipa. O Real, com os jogadores que tem, joga poucochinho”. De certa forma, é essa também a sensação que tem deixado a selecção portuguesa nos últimos largos meses. Uma equipa que concentra demasiada qualidade para tão pouca ambição.
A ponta final desta fase de apuramento para o Mundial expôs um seleccionador com mais dúvidas do que certezas, com inseguranças pouco comuns até no plano do discurso. No lançamento do encontro com a Irlanda, abespinhou-se por algumas das perguntas anteciparem já o jogo decisivo com a Sérvia, sublinhando que a prioridade era a missão em Dublin e que era imperioso dar uma boa resposta. No final dessa partida, paupérrima, por sinal, virou o bico ao prego com um lacónico: “Ganhar 5-0 ou empatar aqui era a mesma coisa”.
Ficou provado que não era – e não apenas por revelar um tremendo contra-senso separado por pouco mais de 24 horas. Não era porque os índices de confiança de uma equipa cujas segundas linhas são infinitamente superiores às primeiras da Irlanda rolaram montanha abaixo. Não era porque o sinal dado em campo foi o de um Fórmula 1 pensado para operar em primeira e em segunda velocidades. Não era porque, já antes, as exibições relativamente convincentes de Portugal aconteceram frente a adversários quase inofensivos.
Fernando Santos nunca foi um treinador popular, no sentido de preconizar uma ideia de jogo que atraia o público. É um técnico que privilegia os equilíbrios, que trabalha com competência as suas equipas do ponto de vista da organização defensiva, mas que foge do risco como o diabo da cruz. Em caso de dúvida, puxa do travão de mão e agarra-se à competência defensiva de uma geração que tem perfil para acelerar mais vezes.
Quer isto dizer que os adeptos reagiriam melhor a uma derrota escrita com outro guião? Uma derrota, por exemplo, ditada por um lance episódico de contra-ataque num jogo de sentido único e de criação quase exclusivamente portuguesa? É possível que não (e a irracionalidade que rodeia o futebol dá verosimilhança a todo o tipo de reacções), mas seguramente que se sentiriam mais bem representados por uma selecção determinada a tomar o próprio destino nas mãos.
Não estão em causa chavões como o de Rúben Dias (a responder a uma pergunta que, também ela, encerra outra chavão), ao repisar a ideia de que sempre entrou em campo para ganhar com a camisola da selecção. Os jogadores de São Marino ou de Gibraltar seguramente que dirão o mesmo. A questão não é sequer aonde se pretende chegar, mas como se planeia lá chegar. E as rotas escolhidas por Portugal nos últimos tempos têm sido permanentes caminhos pedregosos de terra batida.
O preço a pagar por orientar um conjunto alargado de talentos invulgares, com a geração mais bem preparada e qualificada de sempre (basta olhar para o protagonismo que os jogadores têm nas melhores equipas do planeta para tirar conclusões sobre as suas competências), e com as melhores condições logísticas que alguma vez existiram em Portugal, é a pressão de juntar arte aos resultados. É a eles que Fernando Santos se tem agarrado para combater as acusações de um futebol cinzento, mas nos próximos meses vai ter de encontrar outro porto seguro.
É urgente que o faça, de resto, porque foi o próprio a admitir dificuldades em sair de um labirinto para o qual há muito foi arrastado. Portugal não encontra soluções para lidar com adversários que optem por três centrais e uma linha de cinco? Arriscaria dizer que, com excepção de rivais notoriamente mais frágeis, a questão pode ser alargada a vários outros sistemas, dependendo dos protagonistas. A selecção portuguesa tem problemas em controlar e mandar no jogo com bola, ponto final.
À distância, a sensação que fica é de que a segurança (totalmente legítima) que Fernando Santos encara como prioridade absoluta do jogo português - para, a partir dela, sair com bola e criar no último terço - está a gerar um capital insanável de insegurança na equipa. É um paradoxo em movimento. Um grupo de futebolistas talentosos que teme dar um passo em frente com receio de comprometer os equilíbrios colectivos. É a arte, ou a sua possibilidade, enfiada num decepcionante colete-de-forças.