“Acordo cedo, me preparo, vou para o semáforo. Isto é um trabalho”
Fazem arte no instante do semáforo. Carolina e Juliana estão no começo da vida, mas Elisa já conta 56 anos. “Se as cidades tivessem mais espaços culturais, investissem mais em programação cultural, também poderíamos ter um trabalho considerado normal.” Primeira parte da nova série sobre inclusão laboral.
Mal o sinal fica verde, Carolina Lamoglia avança para a passadeira com dois arcos. Sempre sorridente, com o rosa das calças a contrastar com o verde dos arcos, faz o seu número de malabarismo. Caminha então entre os carros para recolher algumas moedas com o chapéu.
Foi assim que conseguiu pagar o curso profissional de Artes de Circo nos últimos dois anos: três mil euros vezes dois. É assim que salda as suas contas. E é assim que espera continuar a fazê-lo quando se mudar para Barcelona para tirar outro curso, aprofundar as suas técnicas de acrobacia de solo e mastro.
Recém-chegada do Rio de Janeiro no final de 2019, ainda trabalhou numa conhecida confeitaria do Porto. O seu visto autorizava-a a estudar, não a trabalhar. “Trabalhei um mês e não me pagavam. Falei com a dona, ela enrolou e não pagou.”
Aquela experiência revelou-se determinante. “Isso vai acontecer muitas vezes”, pensou. Além de comportar um risco, requeria muito tempo. E ela precisava de tempo para ir às aulas e treinar. Encontrou na rua uma forma de contornar o sistema. “Estou fazendo dinheiro e estou fazendo o que eu gosto. Estou sendo feliz fazendo dinheiro.”
Muitas pessoas ficam em silêncio, dentro dos seus carros. Algumas dizem-lhe “boa sorte” ou “bom trabalho”, enquanto depositam algumas moedas no seu chapéu de pano. Outras pedem-lhe: “Não gaste isso com droga.” Apetece-lhe responder a estes últimos, sem perder o sorriso: “Gente, vou pagar meu aluguer, vou pagar minha escola, vou viver!” Mas o sinal muda. E os condutores avançam.
Juliana Soveral, uma amiga que faz um número de malabarismo com quatro bolas, relata experiência idêntica no Porto e em Braga. “Bom dia, bom trabalho!”, dizem-lhe alguns. “Isso não é vida!”, dizem-lhe outros. “Tem que arranjar um emprego fixo.” Ainda na véspera, um homem, desolado, lhe atirara: “Faz isso tudo para ganhar uns trocados!...”
Há muito quem pense que fazer arte de rua não é um trabalho, mas uma forma mais digna de mendigar. “É como se eu estivesse sofrendo”, resume Juliana. “Muitas pessoas falam para eu ir trabalhar. Estão tão dentro do sistema que não percebem outras realidades.” Não se vai pôr a debater a diferença entre emprego e trabalho em dez segundos nem discorrer sobre a precariedade que infecta a vida de quem se dedica às artes do espectáculo. “Enquanto a sociedade não tiver mercado suficiente, a arte vai encontrar caminhos alternativos para sobreviver.”
Criou um número, treinou-o. Escolheu os sítios onde o apresenta, tendo o cuidado de manter uma certa distância de outros artistas de rua. “Acordo cedo, me preparo, vou para o semáforo. Isto é um trabalho.” No seu entender, “é um trabalho bem importante”. “As cidades precisam de mais cor. As pessoas precisam de mais cor. Se as cidades tivessem mais espaços culturais, investissem mais em programação cultural, também poderíamos ter um trabalho considerado normal.”
Aprendeu aquela lição cedo, com a família. “A arte de rua é a arte [performativa] mais antiga que existe”, salienta a mãe, Elisa Soveral. “O teatro começou assim. O circo começou assim.” Mas fazê-lo é quebrar paradigmas. “Quando as pessoas vão ao teatro ou ao circo, pagam para entrar, sentam-se no seu lugar, querem ver. Será que na rua querem ver? Tem o elemento-surpresa. A pessoa não está à espera. Eu estou oferecendo gratuitamente. Se achar que vale, paga, está tudo bem. Se achar que não vale, não paga, está tudo bem.”
Elisa criou um número com uma marioneta enorme chamada Maju. “Uns sorriem. Outros batem palmas. Uns chamam [para entregar uma moeda]. Muitos nem olham, ficam no telemóvel. Tem gente que fecha o vidro com medo. Tem gente que pede às crianças para entregar a moeda.”
Para Juliana ou Carolina, que contam 21 e 22 anos, respectivamente, é mais simples. Sempre quiseram ser artistas de circo. Carolina vai estudar mais três anos. Juliana está no início da carreira. “O que eu quero fazer é trabalhar com o ensino”, diz ela. “Tenho uma formação em educação infantil. Actualmente, trabalho no semáforo. Não vou fazer isso a vida inteira. Nem sei se vou fazer circo a vida inteira. Continuo estudando, buscando outras coisas.”
Para Elisa, que vai nos 56, é mais complexo. Trabalhou muitos anos em produção – primeiro de fotografia, em revistas de arquitectura e decoração, depois de artes de palco, no Galpão Parlapatões, em São Paulo. “Gostaria de pegar alguns freelances em produção, programação. Tenho muito currículo, mas como estou sem núcleo social acabo não entrando no meio.” Estivesse em São Paulo, teria uma história reconhecida pelos seus pares, gente que a conhece e que conhece o seu trabalho.
Veio em 2020 por “um pouco mais de segurança, de tranquilidade, achando que o mercado artístico fervia”. Veio trabalhar para uma escola que não chegou a dar-lhe um contrato. Não correu como esperava. No final do ano lectivo, saindo dessa escola, com os números de desemprego a descer, como é típico no Verão, experimentou trabalhar em cafés. “Eu estava me acabando.” Pôs-se a enviar currículos e propostas de espectáculos. E foi percebendo que, afinal, o mercado é “bem pequeno”.
Já fizera arte de rua, mas de outro modo. “No Brasil, a gente abre praça. A gente convida várias pessoas e monta um espectáculo. As pessoas fazem a roda e contribuem para o chapéu.” Está a experimentar o semáforo, como a filha e a amiga. “Eu gosto do que estou fazendo, mas questiono-me. O que eu estou vivendo é o que eu quero estar vivendo?”
Trabalha três, quatro, cinco, seis horas, conforme o estado do tempo e o seu estado. Quando se lhe pergunta se se ganha o suficiente, responde: “Depende do que você deseja da sua vida. Todos os dias estou fazendo contas. Agora, eu hoje me sinto mais confortável do que quando sabia que ia ter aquele dinheiro no fim do mês mas não estava feliz com o trabalho.”
A marioneta ajuda-a a entrar em cena. O semáforo abre. Pisando a passadeira, Elisa olha para Maju, Maju olha para os carros. Maju balança, como se dissesse: “Vamos fazer qualquer coisa para essas pessoas.” Elisa faz um movimento com o arco. Maju diz que é insuficiente. Elisa faz outro movimento. Maju torna a ficar insatisfeita. Elisa lança o arco ao alto. Agradece e avança por entre os carros.
Há uma avaliação constante. “É preciso ter a auto-estima bem trabalhada. Ainda mais com 56 anos...” Às vezes, dá por ela a pensar: “Gente, o que estão pensando de mim?” Há pessoas que lhes entregam comida. “É bem-vindo, mas é curioso. Parece que a gente está ali pedindo.”
Aos fins-de-semana, há mais crianças nos carros, a marioneta chama a sua atenção e elas entusiasmam-se. Elisa sente-se mais apreciada. “O coração fica mais quentinho.” Durante a semana, encontra menos abertura. “Tem dias que me sinto completamente excluída. Vem uma depressão…”
Estão Elisa e Carolina à mesa de um café e a pergunta sobre inclusão/exclusão vira-se para Carolina. “Como brasileira, nunca me senti incluída”, afiança. “Como artista de rua, talvez seja o momento em que me sinto incluída. É quando as pessoas me olham com outros olhos. Não sou só ‘a brasileira’. Sou uma pessoa que as pessoas vêem e falam: ‘Nossa, que incrível! Olha o que ela está fazendo.’ É um momento em que estou fazendo o que eu gosto e estou sendo admirada.”
Garantem Carolina e Juliana que a ambivalência faz parte da experiência de qualquer principiante. Também a sentiram. Três vezes tentou Carolina começar sozinha e três vezes voltou para casa sem conseguir. Um amigo acompanhou-a e só então venceu o medo.
Juliana tem um conselho para quem começa a actuar num semáforo: “Não pegar nada para o pessoal. No começo é muito difícil. Você vai ouvir muita coisa ruim. Se você se leva muito a sério, nunca mais vai querer fazer isso. É sempre bom começar com alguém para entender como funciona.”
Notam todas que, na rua, como noutros lugares, não é igual ser homem ou ser mulher. “Já me pediram beijos, já perguntaram se podiam sair com boneca”, conta Elisa. “Teve um senhor que falou: ‘Vou dar dinheiro, mas quero um beijo’. É tão rápido, o tempo do semáforo, você nem tem chance de rebater, tem de ‘botar no ignore’...”
Carolina acredita que, por um lado, ser mulher facilita. “Que bonitinha! Vou contribuir.” Por outro, dificulta. “Tem muito assédio.” Vêm-lhe à memória vários episódios. “Nem te conhece e te fala: ‘Você quer tomar um café?’” Uma vez, que desconfortável, um homem puxou-a pelo braço. “Vamos tomar um café!’”, ordenou. “Dá licença, senhor? Não vê que estou trabalhando?”, reagiu. Outro disse-lhe que queria realizar os seus sonhos. “Você nem sabe quais são os meus sonhos!...”
Juliana também tem as suas histórias. “No começo, eu sentia mais, mas não sei. Não é algo que chegue para mim com tanta frequência agora. Alguns por dia, sim. Nas minhas primeiras vezes, tive homens que abriram a porta do carro e falaram para entrar, que me iam levar. Às vezes, estou tão no automático que não consigo nem me defender. Falo só: ‘Não obrigada’. Já houve homens me perguntaram quando custa à hora.” Levaram esses o preconceito para domínios, para si, inesperados.
Tem por hábito anotar tudo. Percebeu que entra na passadeira, em média, 81 vezes por dia. E que, de cada vez que entra, interage com os passageiros de um a três carros. “O número de pessoas no telemóvel é absurdo.”
Uma vez em cena, tem que prestar atenção a muitos aspectos ao mesmo tempo. O semáforo, os carros, os transeuntes, a mochila pousada num canto. “Parece que a gente não está olhando, mas está. Eu sei se está vindo uma ambulância, se alguém passa atrás de mim, se alguém fecha o vidro.”
A rua também pode ser um lugar para criar entendimento, aceitação, sintonia. Tantas vezes Elisa tenta perceber o que se está passando na cabeça das pessoas que estão, dentro dos carros, à sua frente. “Você acaba trabalhando a empatia.” E há uns que se sentem sintonizados, que apreciam o número, que chamam a atenção de outros passageiros, se os houver, que se sentem gratos por aquele instante inesperado de partilha, de cor. E uns que não, que olham para os lados ou enfiam os olhos no telemóvel. “É um exercício diário bem curioso.”