A saúde mental das crianças e dos jovens
Na equação de relativização dos prós e contras das medidas de saúde pública relacionadas com a covid-19, a saúde mental e a imperiosa necessidade de a proteger não foram consideradas.
Boa parte da sociedade parece ter hoje dificuldade em manter contacto com a realidade. O medo, quanta vezes irracional, foi transformado em virtude e a obediência a regras tornou-se, socialmente, mais importante que o questionamento racional sobre a legitimidade e a validade científica dessas regras. Poderemos falar de uma certa psicose de massas, provocada pelo fomento do medo que a pandemia da covid-19 originou? Pelo menos, muitos especialistas em saúde mental assim o sugerem.
Um relatório da Unicef sobre impacto da covid-19 na saúde mental de crianças e jovens, citado por Sara Johnson (The Guardian, 5/10/21) revela que um em cada cinco jovens de 15 a 24 anos, em todo o mundo, sofre de depressão, com receios extremos sobre o futuro e a família.
Segundo o Royal College of Psychiatrists, no Reino Unido, 16% das crianças com idades entre 5 e 16 anos foram diagnosticadas com transtorno mental em 2020. Por outro lado, aumentaram 29%, entre Abril de 2019 e Abril de 2021, os primeiros diagnósticos de psicose, assumindo-se que a pandemia tem graves reflexos na saúde mental da população (Helen Pidd ,The Guardian, 20/10/21).
Mark McDonald, psiquiatra especialista em crianças e adolescentes, afirmou que os americanos estão afectados por “uma psicose delirante”, provocada pelo medo induzido pela pandemia da covid-19. Isto apesar de as mortes verificadas representarem 0,002% na faixa etária dos 10 anos e 0,01% na de 25 anos (S.G. Cheah, Evie Magazine, 22/12/20).
Nicola Davis (The Guardian, 8/10/21), citando estudos de vários cientistas, escreve que os episódios de ansiedade e depressão em todo o mundo aumentaram dramaticamente em 2020, com uma estimativa de acréscimo de 76 milhões de casos de ansiedade e 53 milhões de casos de transtorno depressivo, sendo que as mulheres e os jovens têm maior probabilidade de ser afetados do que os homens e os idosos.
Num oportuno trabalho de reportagem no PÚBLICO de 6/11/21 aborda-se o tema da saúde mental dos nossos alunos e o que lá se lê não nos deixa tranquilos. Numa reflexão sobre os impactos da covid-19 na saúde mental das crianças e dos jovens (DN, 1/11/21), o psicólogo Alfredo Leite afirma que “o suicídio é a principal causa de morte em crianças e jovens adultos em Portugal”.
Os problemas de saúde mental podem ser devastadores para o futuro das nossas crianças e adolescentes e exigem, por isso, intervenções rápidas. Não estão apenas em causa os preocupantes novos casos de depressão e ansiedade (um dos traumas que se vê referido na literatura sobre a matéria foi a ideia transmitida às crianças de que poderiam, por simples proximidade, fazer adoecer os pais ou os avós), mas também o agravamento dos casos dos alunos com necessidades educativas especiais, cujas rotinas de apoio especializado, terapia e socialização foram brutalmente interrompidas e permanecem longe de ser recuperadas.
Numa palavra, não é saudável que as crianças cresçam podendo pensar que são perigosas para os cuidadores e que estes podem também ser perigosos para a saúde delas. Na equação de relativização dos prós e contras das medidas de saúde pública, a saúde mental e a imperiosa necessidade de a proteger não foram consideradas, já que os estudos produzidos indicam como primeira causa da depressão das crianças a desconexão que elas sentem em relação aos amigos e à própria família. O crescimento saudável das crianças e a segurança vital de que necessitam não dispensam o contacto físico e a intimidade emocional. As decisões que as possam pôr em risco não podem ser decretadas por políticos, ouvidos apenas epidemiologistas e virologistas. Devem incluir a pronúncia de psicólogos, psiquiatras e pedagogos.
Ciente embora da desproporção comparativa, as estratégias actuais para direcionar o pânico instalado na sociedade para determinados objectivos fazem lembrar o que a História nos reporta sobre idêntico modo utilizado pelas classes dominantes, em período de crises epidémicas e mudança social, que culminaria com a criação do Tribunal do Santo Ofício.
A sociedade do futuro não pode ser uma sociedade desprovida das liberdades civis anteriormente conquistadas, muito menos uma sociedade em que poucos controlem e dominem os outros, impondo-lhes uma visão distorcida de segurança e bem-estar, desprovida de humanidade.
Santana Castilho é colunista do PÚBLICO