O Camões de Paulina Chiziane
Neste lugar arrepiante para uma pessoa não branca, tudo ainda é bastante branco, até os gestos e os tiques.
“E eu sempre achei que o meu português não merecia tão alto patamar. Estou emocionada”. “Eu venho de lugar nenhum (…), eu vim do chão, o reconhecimento para alguém que vem de lugar algum é, sem dúvida, uma inspiração para uma geração seguinte”. Estas lamentáveis palavras são as de Paulina Chiziane na imprensa da lusofonia quando soube que tinha ganho o Prémio Camões 2021. Na verdade, isso não me surpreende muito vindo de uma autora que foi escolhida para receber um prémio atribuído por dois Estados de dois países com elevados níveis de racismo. Além disso, parece-me que este é um dos únicos prémios literários deste nível atribuído por Estados. Os prémios literários deste nível são normalmente atribuídos por fundações ou associações independentes. Então estamos avisados.
No seu discurso de aceitação do Prémio Nobel de Literatura em 1993 e no qual falou sobre a função da linguagem e do seu poder, Toni Morrison leu o trecho seguinte: “A pilhagem sistemática da linguagem pode ser reconhecida pela tendência dos seus usuários de renunciar às suas propriedades matizadas, complexas e obstétricas em favor da ameaça e subjugação. A linguagem opressiva faz mais do que representar violência; é violência; faz mais do que representar os limites do conhecimento; limita o conhecimento. Quer se trate de obscurecer a linguagem do Estado ou da falsa linguagem dos media entorpecentes; quer se trate da linguagem orgulhosa mas calcificada da academia ou da linguagem da ciência orientada para as mercadorias; quer se trate da linguagem perversa da lei sem ética, ou da linguagem concebida para alienar as minorias, escondendo a sua pilhagem racista no seu rosto literário - ela deve ser rejeitada, alterada e exposta. É a linguagem que bebe sangue, lambe vulnerabilidades, enfia as suas botas fascistas sob as crinolinas de respeitabilidade e patriotismo enquanto se move implacavelmente em direcção aos resultados financeiros e à mente no fundo do poço. Linguagem sexista, linguagem racista, linguagem teísta - todas são típicas das linguagens policiais de dominação, e não podem, não permitem novos conhecimentos nem encorajam a troca mútua de ideias”.
Li tudo de Toni Morrison. Nunca li nada de Paulina Chiziane e não sei se ainda quero ler por medo de tropeçar em algo parecido com o que escreveu Mayotte Capécia, cuja única preocupação era ser aceite pelos brancos, o que aliás desencadeou a raiva de Frantz Fanon. Mas os vídeos de Paulina Chiziane que assisti na Internet contrastam fundamentalmente com os comentários inábeis que ela fez com emoção. Numa entrevista, vemos e ouvimos uma mulher africana orgulhosa e brilhante que denuncia veementemente a usurpação de África e da sua beleza.
Se Paulina Chiziane pensa que será uma inspiração para a próxima geração, ou seja, a minha, a quem ela diz que veio “de lugar nenhum”, engana-se. Certamente Paulina Chiziane não sabe que a minha geração sabe como foi habilmente organizada a degradação dos seus anciãos e que eles não vieram “de lugar nenhum” como ela afirma. É fácil compreender, porém, que Paulina Chiziane pertence a uma geração desse mundo, este país que chamaremos de “Lusoquistão”, que é um lugar medieval, atrasado nos imaginários e que tenta sacudir a sua poeira para seguir os passos do mundo de hoje. É um submundo, um Absurdistão. Neste lugar arrepiante para uma pessoa não branca, tudo ainda é bastante branco, até os gestos e os tiques. Portanto, mesmo as pessoas que deveriam ser as mais lúcidas ainda se perdem. Porque, se Paulina Chiziane sabe que o Prémio Camões sempre foi dado aos brancos e aos mestiços, seus filhos, o que nos prova que ela também conhece a realidade do seu mundo, as suas palavras ainda assim recordam a retórica inquietante de um velho tempo moribundo.
Então, o que é “vir de lugar nenhum"? De onde se deve vir para merecer um Prémio Camões? Esta é uma forma inteligente de denunciar a existência de categorias entre os humanos na Terra; entre grandes e pequenos, entre quem é tudo e quem não é nada, entre quem fala o português de “alto patamar” e quem não fala o português de “alto patamar"? Ou é uma oportunidade perdida por uma pessoa da dimensão de Paulina Chiziane para afirmar com força que só existem seres humanos iguais na Terra, de povos que merecem ser considerados com toda a dignidade que a sua diferença representa? E o que é realmente um português “de alto patamar"? Quem o determina e com que critérios? Em benefício de quem e em detrimento de quem? E o português de Jorge Amado ou Darcy Ribeiro é de qual patamar? Acredito que Paulina Chiziane deva ler com urgência o excelente ensaio de James Baldwin, cujo título eloquente lhe dirá o suficiente: “If Black English Isn't a Language, Then Tell Me, What Is?”
Na lógica de Paulina Chiziane, Amos Tutuola, um dos primeiros autores africanos, originário da Nigéria, a não escrever no modelo literário europeu, que escrevia no que se chama “broken English” e que os ingleses reconheceram, não seria admissível. A geração de Paulina Chiziane é todo o problema dos países lusófonos de África; ela deixou-nos ser cativos do lusotropicalismo. Esta geração ainda não entendeu que é preciso destruir a língua colonial para a recriar com o nosso ADN também. Ela permitiu que a expressão da nossa experiência humana fosse desprezada e rejeitada, e ainda ignora que é precisamente através desta linguagem colonial que o neocolonialismo avança e sufoca sem vergonha tantos talentos que só procuram enriquecê-la. A geração de Paulina Chiziane não compreendeu que é por isso que há o predomínio de brancos e mestiços, que a própria Paulina Chiziane critica, na literatura e entre os vencedores dos prémios literários deste espaço. E como esse mundo nunca produziu um Césaire ou um Baldwin, que questionaram os seus mundos respectivos com estilo e inteligência, não é com o espírito das palavras de Paulina Chiziane que os produziremos amanhã.
Assim, em vez de reclamar e dizer-nos que lhe deram um prémio com desconto, confirmando assim o que sempre se pensou no Lusoquistão sobre as pessoas que não têm o nível de português que lhes é imposto para os excluir do poder, Paulina Chiziane deveria ter aproveitado a oportunidade para assumir com orgulho o que ela é.
“No Negro há uma exacerbação emocional, uma sede de se sentir pequeno, uma incapacidade de qualquer comunhão humana que o confina a uma insularidade intolerável”, escreveu Fanon, revelação que ressoa particularmente bem na geração de Paulina Chiziane. Então não acredito que Paulina Chiziane será uma inspiração para a minha geração com tal postura; a minha geração tem mais autoconfiança e não espera nenhuma aprovação do mundo branco.
Em 2015, Toni Morrison, uma mulher que inspira a minha geração, disse ao The Guardian que escrevia para os negros, “assim como Tolstoi não escrevia para mim quando eu tinha 14 anos em Ohio”, e garantiu que não se sentia mal ou limitada por isto. E um dia ela disse: “Agora podemos ocupar o ofício da escrita onde os negros falarão aos negros”, razão pela qual ela escrevia apenas dentro do rico campo das experiências negras. Toni Morrison nunca se desculpou por quem ela era. O Lusoquistão negro ficará, portanto, perturbado com este espírito e com os ventos libertadores que será forçado a importar de outros africanos e negros emancipados de outros lugares: para o alargar e o tornar mais bonito. E a minha geração vai peneirar tudo, vai criar outro mundo, que não se chamará Lusoquistão e que não será um Absurdistão. É uma geração que será também amiga dos brancos de Portugal e do Brasil e juntos viverão na diversidade cultural e criarão uma linguagem inclusiva para se livrar da hipocrisia do Lusoquistão que ainda faz tremer Paulina Chiziane. Até lá, esperamos também um Prémio Camões para Conceição Evaristo.