Ordem nas ordens
A criação de ordens profissionais e a consequente transferência de poderes do Estado para estas entidades, como o de definirem atos que apenas podem ser executadas por profissionais nelas inscritos, justifica-se apenas em casos excecionais.
O grupo parlamentar do PS apresentou para discussão pública uma proposta de revisão da designada Lei das Ordens, aparentemente para responder a exigências da UE, mas é também uma oportunidade para pôr ordem nas ordens.
1 - As ordens são associações profissionais que se distinguem pelo facto de receberem do Estado poderes de autorregulação, com o objetivo de protegerem os beneficiários da sua atividade profissional, na qualidade dos serviços que prestam e nas consequências de eventuais erros.
Para que as ordens possam cumprir esses objetivos, o Estado delega-lhe poderes de decisão sobre as condições de acesso e de exercício da profissão, poderes de reserva de atos profissionais e de reserva do título, de que resultam obrigatoriedades de inscrição, de pagamento de quotas, de estágios e de formação complementar, para candidatos já diplomados por instituições de ensino superior.
2 - O que se tem passado em Portugal nesta matéria é uma total falta de orientação ou de ordem. Desde meados dos anos 90 foram criadas ordens profissionais sem qualquer justificação do ponto de vista do interesse público ou da proteção dos beneficiários da sua atividade. Elas servem sobretudo para proteger os profissionais. À criação de tais ordens associou-se, em muitos dos casos, a definição de actos profissionais reservados e o resultado foi o fechamento de segmentos do mercado de trabalho e a proteção corporativa dos profissionais. Através da obrigatoriedade de inscrição, estabeleceram-se monopólios para diplomados de determinadas áreas disciplinares, com a exclusão de muitos outros com competências e formação igualmente adequadas.
Por outro lado, regista-se, em algumas ordens, um abuso no uso dos poderes de autorregulação, tanto no que respeita à justificação, duração e custos dos estágios e dos cursos de formação, como quanto ao valor das quotas e à discricionariedade com que se abrem os períodos de inscrição. São abusos que deixam de fora milhares de diplomados do ensino superior que teriam todas as condições para exercer atividade profissional.
Na prática, as ordens, nos casos em que se aprovou a reserva de actos profissionais, transformaram-se em associações fechadas com um poder não controlado de definir as condições de acesso ao mercado de trabalho. E mais grave ainda, usam um poder de facto para determinar o que deve ou não deve ser ensinado nos cursos de ensino superior e quantos estudantes podem ou não aceder a esses cursos. No que respeita ao ensino superior, em regra, a influência das ordens é corporativa e negativa, obstaculizando os processos naturais de inovação pedagógica e científica, a pluridisciplinariedade, a flexibilidade e mobilidade na construção de percursos formativos.
O último caso absurdo de criação de mais uma ordem ocorreu em 2019 com a aprovação da Ordem do Serviço Social, sobre a qual me pronunciei aqui.
3 - Com este projeto de lei está em causa principalmente a correção destes abusos e absurdos. Porém, os deputados dos vários partidos com representação na Assembleia da República deverão no futuro dar uma maior atenção a estas matérias, porque é deles que depende a continuidade das decisões que agora tomarem.
Uma coisa é a liberdade de criar associações profissionais, que deve existir e deve ser fomentada. As associações profissionais desempenham um papel relevante, proporcionando contextos para o progresso do conhecimento e da qualidade dos serviços prestado. Coisa diferente é a transferência de poderes do Estado para as associações profissionais, pondo em causa o interesse público e o interesse dos beneficiários.
A criação de ordens profissionais e a consequente transferência de poderes do Estado nestas entidades, sobretudo nas matérias relativas à reserva de atividade, ou seja, à definição de atos que apenas podem ser executadas pelos profissionais inscritos nas ordens, justifica-se apenas em casos excecionais. Justifica-se quando se exige aos profissionais uma autonomia, isto é, uma capacidade de decisão na identificação de problemas complexos e na sua resolução, e cujo exercício implique riscos de vida ou de morte (como é o caso dos médicos), riscos de segurança ou confiança (como é o caso de alguns ramos da engenharia) ou riscos relacionados com as liberdades, garantias e direitos de defesa (como é o caso dos advogados).
Por essa razão me parecem particularmente relevantes as normas, agora introduzidas, que impedem as ordens de estabelecer para si próprias atividades profissionais reservadas e que, num prazo curto, permitirão “expressamente avaliar se os regimes de reserva de atividade em vigor”. Contudo, o êxito e a continuidade desta reforma depende muito dos senhores deputados.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico