O Património a que Lisboa tem direito: pelouro!
Agora que nos anunciam “novos tempos”, é tempo de acreditarmos que a CML lhe dará, finalmente, a atenção devida, corrigindo más práticas de décadas.
Refere-se o título acima não ao património imobiliário da Câmara Municipal de Lisboa (CML) mas ao Património da Cidade, o todo identitário e afectivo: património arquitectónico-histórico-espaço público-mobiliário urbano- árvores, em que, obviamente, o máximo divisor comum são as pessoas.
Agora que nos anunciam “novos tempos”, é tempo de acreditarmos que a CML lhe dará, finalmente, a atenção devida, corrigindo más práticas de décadas. Práticas que o PDM de 1994 não conseguiu impedir e que na última década e meia, sob especulação e promoção imobiliárias sem precedentes e insufladas pelo boom turístico e dos “vistos gold”, conseguiram o seu apogeu no consulado do arq. Manuel Salgado (e de quem o tutelou), graças à sua lamentável reabilitação urbana, assumida e deliberada, que fez “gato-sapato” do PDM, que ele próprio reformulara em 2012 (sem oposição), em desrespeito descarado pela Carta Municipal.
Patrocinou-se o fachadismo, a construção nova travestida de “reabilitação”, a demolição, parcial ou total, de cerca de meio milhar de edifícios, arrasando-se quase por completo o património do século XIX, início do XX, e a imagética de bairros como Campo de Ourique, Lapa, Bairro Camões, Bairro Barata Salgueiro, Picoas e Avenidas Novas.
Tem sido confrangedor assistir ao abate de interiores valiosos e irrepetíveis (estuques, azulejos, madeiras exóticas, pavimentos, escadas) e logradouros imaculados, ao impermeabilizar de solos (traição a Ribeiro Telles), à destruição de vistas de/para a cidade (o hospital CUF/Alcântara é o pior exemplo).
Isso e uma aposta em hotelaria, hotelaria e mais hotelaria como forma de repovoar a cidade.
A herança está à vista de todos e é pesada.
É tempo de se corrigir a trajectória, reparar danos e parar de destruir, e de deixar destruir, Património.
E a forma “indolor” e inovadora para se assegurar um novo paradigma é pela criação de um novo pelouro camarário: o pelouro do Património.
Um pelouro autónomo, sob tutela directa do Presidente da CML. Ágil, com espírito de missão e permanentemente atento. Capaz em História da Arte, Arquitectura, Paisagismo. Que participe nos processos de decisão das direcções municipais e unidades territoriais, cruzando com o Urbanismo (planeamento e licenciamento), Cultura, Ambiente, Espaço Público e Mobilidade, SRU, GEBALIS e EGEAC, Assembleia Municipal de Lisboa e respectivas comissões.
Que contribua para assegurar a transparência e o combate à corrupção, que garanta a auscultação efectiva da população nos projectos de impacte para a cidade e bairros - a cidade faz-se com as pessoas.
Sem cingir ao edital e ao “link” a participação que a lei obriga em loteamentos e planos de pormenor, mas sempre que os projectos têm impacte para a cidade, ainda que relativos a prédios isolados (devia ter havido discussão pública nos projectos dos edifícios do Patriarcado, no Campo Mártires da Pátria, da Rua das Beatas e do antigo Hospital da Marinha) mas com implicações sérias no quarteirão, nas volumetrias e fachadas, solos impermeabilizados (contraciclo ambiental) e aumento da circulação automóvel (idem civilizacional).
É preciso muita atenção a uma eventual simplificação do licenciamento, vulgo “check-list”, só porque é preciso reduzir os prazos. Se tal é aceitável em obras “vulgares”, será pior emenda que o soneto nos casos de edifícios elencados no PDM.
Não esquecer de revogar os “projectos estruturantes”, uma originalidade (legal?) do antigo vereador, que apenas serviu para projectos queimarem etapas e para a CML obstaculizar o acesso do público à informação (só deferida quando por ordem do tribunal).
Avalie-se à lupa o património imobiliário da CML (permutas de terrenos e de uso que mereciam um crivo e não o tiveram? –ex: a feira popular em Carnide vs. Palácio do Machadinho) e as obras municipais (os critérios na escolha de projectistas no Uma Praça em Cada Bairro) e o “licenciamento zero”, que tudo permite.
Reforce-se e salvaguarde-se a Estrutura Verde existente; muscule-se o Lojas com História, haja voz activa nos destinos da Turismo de Lisboa.
Ele há mais “pastas” por abrir do que as que se passarão dos gabinetes cessantes para os novos: prepare-se convenientemente a revisão do PDM em 2022, a “Constituição” da cidade, que importa não contornar com planos de pormenor e outras escapatórias.
Há que rever os planos de pormenor/urbanização dos bairros históricos, porque a última revisão apenas potenciou a perda da sua genuinidade, estética e material, um pouco por todo o lado. Tem sido uma falácia a afirmação de que toda a cidade é histórica e que assim está protegida pelo PDM em vigor.
Urge extinguir a disfuncional e perversa “comissão técnica de apreciação de licenciamento urbanístico CML/DGPC”. E, pelo contrário, passar a dignificar a Estrutura Consultiva Residente do PDM, tão vexada e contrariada que tem sido desde 2007.
E reconhecer-se que se anunciou uma coisa e se fez outra na candidatura à UNESCO da “Lisboa, Histórica, Cidade Global e Baixa Pombalina”: é que a sua “memória justificativa” está hoje muito mais falsa do que então.
E que há regulamentos municipais a precisar de revisão urgente: o RMUEL [Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa] e o do Lojas com História, sob pena de vivermos todos numa marquise (para quando declarar guerra, “cacete-cenoura”, às marquises e cabos das operadoras de telecomunicações que infestam as nossas fachadas?), e ficarmos sem lojas residentes. E outros que precisam de ser criados: o dos bens classificados de Interesse Municipal e o da Calçada Portuguesa (simples e artística).
Assim como vai ter que se definir os critérios que regem o destino anual das receitas do Casino de Lisboa e das taxas turísticas, porque tem sido uma autêntica salganhada.
E será imprescindível a participação do novo pelouro nas medidas e incentivos que a CML vai ter que criar para incentivar a conservação/reabilitação do edificado privado, em complemento aos instrumentos legais e programas de apoio existentes.
Urgente, também, a monitorização dos processos urbanísticos aprovados até ontem e os “em apreciação” hoje. Algo que foi feito pelo vereador Ricardo Veludo logo que tomou posse, e que resultou na anulação de algumas aprovações do antecessor, correcções e reprovações de projectos considerados irregulares e maus para a cidade - rapidamente, contudo, enxofraria alguns arquitectos de renome…
Campos pantanosos, sem dúvida, aonde “novos tempos” terão que chegar são os que se referem aos “projectos de alterações durante a obra” – aprova-se uma coisa e inaugura-se outra diversa, regra geral gravosa para o Património – e aos pareceres de estruturas, em que não há segundas opiniões e, regra geral, a “unilateralidade” decide quanto a manter-se e recuperar ou deitar abaixo. Quanto do nosso património “entre-séculos” desapareceu graças a isso? Situação idêntica, aliás, verifica-se no que toca às nossas árvores de grande porte, cujas avaliações fitossanitárias são de sentido único - até quando vão ficar reduzidas a “bibelots”, descartáveis ao primeiro projecto de “paisagismo”, podadas pelo labirinto descontrolado das juntas de freguesia. Quando é que a competência regressa à CML?
É tempo de acreditar que tudo isto é possível e que não se repetirão projectos urbanísticos lesa-património sem o escrutínio da população.
Porque está já aí mais do mesmo para os quarteirões da Confeitaria da Ajuda, Largo de S. Paulo, R. Conceição, Corpus Christi, Mónicas, Portugália, Dispensário de Alcântara, Tapada das Necessidades, escola primária e residências de estudantes no Hospital Miguel Bombarda, hotel no quartel da Graça, quartéis de bombeiros da Av. Defensores de Chaves e da Av. D. Carlos I, ampliação do MNAA, “Terraços do Monte”, “Unidade de Execução da Ajuda”, Matinha e Alto do Restelo.
Há que relançar de vez as escolas de calceteiros e jardineiros, dignificar ambas as profissões, a bem da cidade e da própria CML, que se verá livre da contratação externa. Defender o sempre esquecido mobiliário urbano histórico, das colunas e consolas de iluminação pública aos bancos e bebedouros de antanho. Tornar uma prioridade de mandato o Arquivo Municipal de Lisboa - trate a CML de encontrar um edifício histórico municipal/Estado digno e de fácil acesso, no centro da cidade, onde possa juntar as várias valências do arquivo e onde o mesmo deixe de ser um pesadelo para os investigadores e um mau exemplo de gestão dos recursos humanos da própria CML.
E o nosso património móvel, os nossos eléctricos, o E-24 que tanto nos custou a todos fazer ver à CML que era uma prioridade e nunca mais volta ao Sodré e ao Carmo? Há que reactivar mais linhas de eléctrico: Santa Apolónia-Terreiro do Paço, Martim Moniz-Campo Santana, para termos um modelo que faça história no século XXI como os “brill” a fizeram no XX.
Aguardemos pelos “novos tempos” e que uma lufada de ar fresco se verifique de facto, sem correntes de ar, até porque as pessoas estão cansadas de protestos, petições e recursos a quem de direito.