O exemplo de Sampaio e a democracia “de baixo para cima”
Se a plenitude da democracia é um processo sempre inacabado, a luta por um socialismo democrático numa sociedade mais coesa, justa e equilibrada está ao nosso alcance. Como a pequenina luz bruxuleante – no poema de Jorge de Sena – que perdura e brilha, a utopia de um humanismo universalista é o melhor antídoto da distopia.
Pode o exemplo de Jorge Sampaio inspirar uma política democrática onde as lógicas “bottom up” e “top-down” possam combinar-se num equilíbrio virtuoso? Se as noções de “democracia” e de “socialismo” encerram sentidos polissémicos e até opostos entre si, a postura, a ética, a estética e a afetividade que Jorge Sampaio (J.S.) incutiu na ação política tornaram concebível a reconciliação de sentidos tão contrastantes, sob a égide de uma cultura profundamente humanista.
A “democracia plena” não é senão um desígnio utópico. Mas é ele que nos pode aproximar da ideia de socialismo, e não o mito de uma qualquer “essência” ou modelo acabado que se possa impor à sociedade. Já sabemos que não há soluções salvíficas e até a palavra “socialismo” pode mascarar regimes hediondos (como o nazismo). Para quem não acredita em paraísos fictícios, é preferível assumir que a emancipação está no percurso e não no fim do caminho. Por isso, prefiro a fórmula de Boaventura de Sousa Santos segundo a qual “o socialismo é a democracia sem fim”. Só esse horizonte utópico pode prevenir males maiores, tais como a velha ortodoxia de uma “democracia vinda de baixo” na prática submetida a um poder totalitário “de cima para baixo”. Efetivamente, o chamado “centralismo democrático” adotado pelo partido Bolchevique (em 1906, embora a génese do conceito remonte à Alemanha do século XIX) revelou que, na ação social, as intenções (por boas que sejam) são quase sempre pervertidas na prática. A “ditadura do proletariado” foi um exemplo desastroso disso mesmo. Como a experiência histórica já mostrou, ao contrário da cartilha comunista, uma “origem de classe” no operariado não é garante de firmeza e coerência moral na defesa de alternativas emancipatórias, enquanto um dirigente oriundo da elite – como J.S. – pode promover o reformismo radical e os valores socialistas e a luta contra os excessos do capitalismo sem abdicar da defesa das liberdades. É com esse espírito que uma elite transformadora pode promover o desenvolvimento e transcender o elitismo pretensioso.
Recordo, a esse propósito, um episódio pessoal por que passei nos idos anos oitenta, quando frequentei uma cadeira de sociologia política no ISCTE (em 1983-84), então ministrada por Miguel Esteves Cardoso. Ele, que seguramente nunca foi marxista, mas sempre foi um saudável “provocador”, proclamou numa dessas aulas que o centralismo democrático era “o sistema mais democrático do mundo”, visto que envolvia a participação ativa das células de base – como na URSS – na discussão e debate de ideias que, alegadamente, seriam transmitidas e aperfeiçoadas pelas estruturas intermédias e superiores antes de serem implementadas pela cúpula dirigente em nome do partido (ou do Estado). A experiência pessoal por que tinha passado uns anos antes num grupo de extrema-esquerda, quando como militante de base presenciei o poder opressivo de um “controleiro”, ao humilhar um camarada em nome da “linha justa”, justificou o meu sorriso sarcástico perante a referida afirmação. Mas o sentido dessa experiência ganhou maior clarividência com a ajuda de Soljenítsin e das teorias sociológicas, cujos argumentos foram mais do que suficientes para contestar aquela conceção de “democracia”. Foi essa consciência política que me levou a reconhecer as virtudes da democracia liberal como modelo incontornável na defesa das liberdades e da justiça social. Porém, dadas as suas inúmeras imperfeições, a componente representativa da democracia pode (e deve) ser complementada com base noutras formas de exercício democrático a partir de baixo, segundo uma lógica inclusiva e abrangente de cidadania ativa. Esse foi um desígnio que o ex-Presidente agora desaparecido sempre perseguiu.
No momento em que o país chora a morte de Jorge Sampaio, a melhor forma de honrar o seu exemplo é atentarmos na sua trajetória de vida e na coerência que demonstrou ao longo do seu percurso pessoal, que começou pelo ativismo estudantil contra o Estado Novo e culminou com o exercício em altos cargos institucionais, sem que isso significasse qualquer espécie de traição aos ideais de juventude. Pelo contrário, o seu exemplo parece dizer-nos que o primeiro banho de luz é sempre o mais resplandecente. Como disse no seu funeral o atual Presidente, “Jorge Sampaio amou Portugal no calor imparável dos seus sonhos de jovem, liberdade, igualdade, democracia, socialismo, universalidade”. Fê-lo fazendo jus à centralidade da dimensão moral na esfera política. Sampaio incutiu na vida pública a afetividade positiva fundada na ética humanista, e no sentido de partilha solidária com os setores mais vulneráveis da sociedade. Uma das etapas mais ilustrativas do seu talento político e sensibilidade social foi justamente a nível do poder local, aquando do seu mandato como presidente da Câmara Municipal de Lisboa, onde soube criar amplos consensos no campo da esquerda, até então considerados impossíveis.
O desaparecimento do ex-Presidente Sampaio ocorre justamente num momento em que os valores democráticos que perseguiu ao longo da sua vida são confrontados com imensos riscos e ameaças. Os desafios que a crise pandémica veio colocar clamam por um maior esforço de aproximação entre as instituições e as dinâmicas da sociedade civil, como ele sempre alertou. As desigualdades económicas, os desequilíbrios demográficos e ambientais, as assimetrias territoriais do país, etc., exigem do governo, dos municípios e responsáveis institucionais uma nova abordagem. Numa altura em que os programas de ajuda à recuperação económica promovidos pela UE colocam o ambiente, a transição digital e o combate às desigualdades no centro das preocupações, é obrigatório honrar a memória de J.S. por ele personificar uma lição a reter, mormente na sua capacidade de conjugar de forma notável o sentido institucional, a defesa dos valores humanos e o ativismo cívico.
Por outro lado, numa altura em que o poder local está sob escrutínio, é tempo de revitalizarmos a democracia segundo uma dinâmica “de baixo para cima”, exigindo maior abertura e transparência aos partidos, agentes económicos e aos municípios, valorizando a participação dos cidadãos e dos seus movimentos cívicos na vida pública. Esse é o único caminho possível para promover formas de governança local que credibilizem a política e estimulem o desenvolvimento sustentável de que o país precisa para enfrentar os desafios atuais. Tais desígnios foram, aliás, a marca pessoal mais saliente nas batalhas políticas de J.S. ao longo da sua vida. Se a plenitude da democracia é um processo sempre inacabado, a luta por um socialismo democrático numa sociedade mais coesa, justa e equilibrada está ao nosso alcance. Como a pequenina luz bruxuleante – no poema de Jorge de Sena – que perdura e brilha, a utopia de um humanismo universalista é o melhor antídoto da distopia.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico