Lisboa 2021: habitação, habitação, habitação
Em 2017, todos os candidatos já se mobilizavam em torno da habitação e da “devolução da cidade a quem de direito”, leia-se os “Lisboetas”. Mas há alguns detalhes que diferenciam a campanha de 2021 relativamente à de 2017, em especial a de Medina.
1. Autárquicas 2021: as vantagens do incumbente
A habitação é “o” tema das autárquicas de 2021. Mas já o era em 2017: este foi, aliás, o ano de politização deste tema na altura associado à turistificação, gentrificação e especulação imobiliária. O timing de criação da Secretaria de Estado da Habitação, cerca de três meses antes das autárquicas, evidenciava a solidariedade do governo de António Costa com o executivo de Medina, à época acusado de ter contribuído para o aumento dos preços da habitação.
Em 2017, todos os candidatos já se mobilizavam em torno da habitação e da “devolução da cidade a quem de direito”, leia-se os “Lisboetas”. Mas há alguns detalhes que diferenciam a campanha de 2021 relativamente à de 2017, em especial a de Medina.
Em primeiro lugar, a pandemia pôs entre parênteses o turismo e, com isso, aliviou um pouco as hostilidades sobre o incumbente, cujo slogan de 2017 – “Lisboa Precisa de Todos” – apostava no apaziguamento social, em particular entre residentes e visitantes: uma tentativa de realçar os benefícios da “internacionalização” da cidade.
Em segundo lugar, Medina terá aprendido que as promessas eleitorais não devem ser quantificadas. A quantificação gera um efeito boomerang e o seu incumprimento torna-se um argumento fácil para a oposição. Moedas é um dos candidatos que mais se tem apoiado neste argumento. Porém, as suas propostas em matéria de habitação são escassas. Aliás, a primeira medida do seu programa, fazer de Lisboa uma “fábrica de unicórnios”, tem dois problemas: o primeiro, é que mais de 95% dos cidadãos desconhecerão o vocabulário criativo das tecnológicas; o segundo é que o resultado da concentração de unicórnios num determinado território é a explosão estratosférica dos preços da habitação, como aconteceu em Silicon Valley e S. Francisco, uma realidade bem ilustrada no documentário Million Dollar Shack. Ora, a incapacidade de antecipação dos efeitos perversos de determinadas políticas urbanas foi justamente o erro de Medina e Salgado. E Moedas segue o mesmo caminho.
Em terceiro lugar, a vantagem do incumbente traduz-se no conhecimento profundo da máquina camarária e dos “dossiers”, mas também na obra feita, mesmo que incompleta.
2. Medina e a habitação: os jovens e as classes médias
A aposta de Medina é na habitação acessível para os jovens e classes médias, secundarizando os grupos sociais mais vulneráveis normalmente relegados para a chamada habitação social. Os cartazes de Medina e Beatriz Gomes Dias mostram uma diferença de fundo no imaginário de juventude a que se dirigem.
Em todo o caso, e tendo presente essa lacuna, que não é um pormenor, é justo salientar a bondade do Programa de Renda Acessível, o PRA. A discussão da habitação nesta campanha tem ido para além do muito virtuoso, mas nebuloso, debate do “direito à habitação”. Ainda assim, discutem-se pormenores que a maioria dos cidadãos desconhece e não tem interesse: é fundamental perceber exactamente o PRA e as suas implicações, agora que o programa se começa a concretizar depois de um arranque difícil.
3. Casas acessíveis: a oportunidade e o seu entendimento
O PRA pode ser, de facto, uma oportunidade para muitos agregados “Lisboetas”, muito mais do que os seis mil previstos neste programa que se destina a agregados com rendimentos intermédios, isto é: rendimentos com limites mínimos, abaixo dos quais a solução é a habitação social, e máximos que variam em função do número de pessoas.
Segundo os dados mais recentes do INE, relativos a 2019, o rendimento bruto anual médio por agregado fiscal em Lisboa era pouco mais de 28 mil euros e na Área Metropolitana de Lisboa não chegava aos 23 mil: valores bem inferiores aos limites máximos estipulados no programa – 35 mil (uma pessoa) ou 45 mil (duas pessoas), mais cinco mil por dependente. Sendo improvável que os rendimentos tenham aumentado nos anos da pandemia, percebe-se a potencial dimensão da procura deste programa. Isto, mesmo tendo em conta que muitos agregados possuem casa própria, com ou sem crédito, e por isso estão excluídos.
Mas não é certo que, no presente, haja um entendimento generalizado do programa como uma oportunidade efectiva, o que pode ter várias razões. Para além da tão falada baixa execução do programa e das seis mil casas prometidas e incumpridas – aspecto que concorre para a desconfiança da classe política e da capacidade de execução do Estado –, junta-se nesta linha um outro factor: a descrença, muitas vezes injusta, na transparência e equidade dos sorteios públicos. A desinformação é outra razão, a que acresce a escassez estrutural de uma oferta pública de habitação que dificulta equacioná-la como solução efectiva. Também o receio dos excessos burocráticos de uma candidatura a um concurso público e a própria iliteracia burocrática – que, supostamente sendo inferior entre os jovens e as classes médias, existe – são factores importantes.
4. O que está feito e as implicações dos diferentes eixos do Programa Renda Acessível
Foram os constrangimentos iniciais do PRA, originalmente circunscrito à componente público-privada (concessões), mas também a urgência política e social do problema da habitação, que levaram à sua diversificação através do reforço da componente pública que tem quatro eixos: o PRA-Público, em que a autarquia constrói em terrenos seus ou reabilita edifícios do seu património; o PRESS-Programa de Recuperação de Edifícios da Segurança Social, resultante de um acordo entre a autarquia e o governo de Costa em meados de 2018; a reabilitação do património disperso da autarquia e, finalmente, o subarrendamento a privados de fracções isoladas no âmbito do programa Renda Segura.
Esta distinção pode parecer inútil, mas não é: compreendê-la é importante dos pontos de vista político e urbanístico-arquitectónico, mas também para os que vierem a habitar estas casas. Politicamente, para a esquerda (BE e CDU) a questão essencial é a defesa da exclusividade do público e daí o repúdio por qualquer iniciativa que envolva os promotores privados. Do ponto de vista urbanístico-arquitectónico e para os habitantes dessas casas, a importância desta distinção prende-se, no essencial, com as especificidades das habitações resultantes dos diferentes eixos: a localização, a escala e o tipo de intervenção. Mas há nuances.
Uma análise dos concursos já realizados no site Habitar Lisboa – excelente fonte de informação que caracteriza todas as fracções, incluindo fotografias e plantas, que contrasta com a confusa informação sobre o previsto, em particular as fracções do património disperso da autarquia – permite perceber o que está feito. O primeiro concurso terminou em Janeiro de 2020, ano em que se salientam as casas do património disperso, mas também as da Renda Segura, algumas mobiladas. Em ambos os casos, em especial nas segundas – com casas “normais” e algumas, poucas, que terão migrado do Alojamento Local, o que se percebe cruzando a localização (bairros históricos), a tipologia (pequena) e a decoração (ao estilo Airbnb) –, a qualidade e a localização são muito diversas: duas variáveis que estão longe de ser indiferentes para os seus habitantes.
Em 2021, embora essas modalidades se mantenham, o que se destaca é a reabilitação dos edifícios da segurança social (PRESS) que se distinguem pela centralidade, implantação na malha urbana já consolidada e pela homogeneidade do tipo de intervenção: reabilitação total de edifícios pré-existentes que oferecem “casas novas” em “zonas prime”, como a Avenida da República ou a Estados Unidos da América.
Não por acaso, os eixos mais atrasados são o público/privado (sem nenhuma casa entregue) e o PRA-Público (actualmente com um concurso a decorrer para a zona de Entrecampos com mais de 100 casas): para além dos entraves colocados pelo Tribunal de Contas e as dificuldades em atrair promotores privados que, a aderirem, fá-lo-ão nas zonas mais valorizadas, a grande dimensão de várias das operações previstas em ambos os eixos é fundamental. A escala destas intervenções aumenta a complexidade da sua execução e coloca uma outra questão: a dos impactos sociais e urbanísticos, elevando a discussão para um outro nível, a do bairro e da cidade.
Não descurando a urgência de construção destas casas, vale a pena lembrar alguns dos debates tidos a propósito do último grande programa público de habitação em Lisboa na década de 1990, o Programa Especial de Realojamento/PER, actualizando-os: a qualidade e inovação urbanística dos projectos, dos espaços públicos, o tipo de equipamentos e serviços, a ligação com a envolvente, a densidade, a qualidade arquitectónica dos edifícios, incluindo o desenho de casas mais condizentes com as formas de habitar contemporâneas, os impactos nas “comunidades” locais e a sua participação no processo, a avaliação da execução do programa e a gestão dos edifícios depois de ocupados. A polémica desencadeada pelo caso do Restelo mostrou bem a importância de alguns destes debates.
Mas, independentemente das polémicas que possam surgir, era bom que este programa, que tem como objectivo prioritário resolver a questão da habitação dos segmentos intermédios, não perdesse de vista um outro objectivo igualmente prioritário: fazer cidade de qualidade, cidade “resiliente”, como agora se diz.