“Não aceitamos, não admitimos, não configuramos como possível que alguém com ADSE tenha um tratamento diferenciado”
Ministra Alexandra Leitão responde a bastonário da Ordem dos Médicos sobre polémica com ADSE e avisa que atrasos no atendimento em serviços públicos, acumulados durante a pandemia, só conseguirão ser recuperados até fim de Outubro
A ministra da Modernização do Estado confessa-se surpreendida com posições da Luz Saúde e CUF, que ameaçam retirar vários actos médicos da convenção com a ADSE e responde, em tom duro, a críticas do bastonário da Ordem dos Médicos. Alexandra Leitão defende mesmo ser “inadmissível” e diz não acreditar que “a ética médica” leve profissionais a discriminar pacientes. Pode também ouvir esta entrevista na íntegra na Renascença esta quinta-feira, às 23h.
Em comunicado enviado quarta-feira aos beneficiários, a ADSE diz que está a ponderar a possibilidade de denunciar a convenção nas áreas ou valências em que se verificar que a prestação de serviços por um prestador não é integrada ou que o corpo clínico afecto à convenção não é suficiente. Também vai haver alterações na questão da comparticipação dos partos. Caminhamos para uma estabilização ou vamos continuar nesta negociação na praça pública?
Sabíamos que a entrada em vigor de novas tabelas ia ser sempre um momento importante porque as que existiam eram antigas, muito desactualizadas, mesmo em função da evolução da medicina. E davam azo a acertos, regularizações nos fins dos anos na casa de dezenas de milhões de euros. Tivemos actos em que os preços aumentaram, como as consultas, actos em que se mantiveram. É normal que uma coisa tão grande e com tanto impacto gere reacções e acertos também.
Estava à espera desta reacção tão vigorosa por parte de grandes grupos privados de saúde ao ponto de ameaçar deixarem de fazer partos convencionados, por exemplo?
A primeira proposta é de Abril, adiou-se entrada em vigor. Ao longo deste longo diálogo havia alguns aspectos em que não havia acordo com alguns prestadores. No entanto, não esperávamos que houvesse a ideia de tirar da convenção tantos actos. O que o comunicado da ADSE diz é que, se numa tabela de determinada área clínica há actos fora e actos dentro, um beneficiário fica sem saber que acto A está fora ou dentro. É a própria coerência interna das tabelas que é posta em causa. Aí, a ADSE tem que analisar se, em função do número de actos que está a ser retirado, se justifica ainda manter aquela tabela. Ou seja, se isso assumir proporções demasiado excessivas que ponha em causa a coerência da tabela.
E acha que se chegou a isso?
Neste momento, isso está a ser analisado pela ADSE. Não diria ainda que sim.
Esta polémica surge sobretudo com dois grupos de saúde, Luz Saúde e CUF. Está circunscrito a esses dois grupos e tem esperança que ainda seja possível chegar a acordo com esses dois?
Sim, são esses dois. Com as correcções circunscritas a três ou quatro actos, entre os quais os partos, que a ADSE já anunciou que ia fazer, tenho esperança em que a situação se regularize, a bem dos beneficiários que se sentem preocupados.
Corrigir será uma cedência a esses grupos?
Não veria assim. Acertos a posteriori são coisas naturais. Pode haver outros actos que estão a ser retirados e que não vão ser corrigidos porque não há nada a corrigir. Daria este exemplo: as consultas passaram de comparticipação de 19 para 35 euros e foram retiradas das convenções por alguns prestadores quando pretendíamos, com isso, que houvesse mais adesão.
Qual a racionalidade nessa retirada, então?
Não faço avaliação valorativa quanto a isso.
O bastonário da Ordem dos Médicos disse, a propósito de toda esta polémica, que é preciso assegurar a qualidade dos serviços médicos e acrescentou: “Não queremos mais casos como o do bebé sem rosto.” A qualidade dos serviços prestados está assegurada e depende do pagamento da convenção?
Não ouvi eu própria essas declarações, mas quero dizer que a nossa principal preocupação na ADSE é a qualidade dos serviços prestados aos beneficiários. Não aceitamos, não admitimos, não configuramos como possível a leitura de que alguém que entra pela ADSE ou qualquer outro subsistema tenha um tratamento diferenciado. Isso é inadmissível e a ética médica não permitirá que aconteça.
Esta polémica surge numa altura de alargamento da ADSE, em que entraram mais 100 mil beneficiários devido à entrada dos prestadores de serviços na função pública. Até que ponto a alteração de tabelas pode prejudicar novas adesões, uma vez que a ADSE já não é obrigatória mas facultativa?
Este alargamento foi bem-sucedido, na casa dos 100 mil, com uma redução da média etária dos beneficiários. O movimento conjugado do alargamento com estas novas tabelas, que não têm como intuito a poupança, mas a previsibilidade, conduzem a uma sustentabilidade da ADSE que me importa salientar. Espero que este momento de maior instabilidade seja curto e vá ser ultrapassado.
Não teme que as pessoas desistam de aderir?
A imagem de marca da ADSE é a de que quando há uma coisa muito grave (e a comparticipação na oncologia mantém-se a 100%), pode-se contar com a ADSE. Por outro lado, a ADSE não tem “plafonamento”, ao contrário dos seguros de saúde.
Desde Fevereiro de 2020, pelo menos, que o seu ministério anda a negociar com os sindicatos a reposição dos 25 dias de férias, ou seja, a devolução dos três dias retirados durante o período da troika. Isso vai avançar agora neste OE22? Gostaria que avançasse? Ou isso será feito ainda antes do OE só pelo Governo?
Estamos num momento muito específico [de preparação do OE22]. No que toca à Administração Pública (AP), as opções estratégicas para este OE são uma valorização dos técnicos superiores da AP.
Então a prioridade clara são os técnicos superiores. Farão isso sem mexer nas restantes categorias?
Nos últimos anos, fruto do aumento do SMN, a base remuneratória da AP tem também aumentado. E tem havido aumentos nos escalões imediatamente a seguir, numa lógica de coesão social. Nas carreiras gerais da AP, temos três: assistentes operacionais, os assistentes técnicos e os técnicos superiores (os que têm licenciatura ou mais, estamos a falar de juristas, economistas, etc.). Depois há todas as carreiras especiais (professores, juízes, médicos, etc.). Nas carreiras gerais, temos 50% de assistentes operacionais, 25% de assistentes técnicos e 25% de técnicos superiores. Só um quarto das carreiras gerais são pessoas com qualificações superiores [são cerca de 78 mil]. Pretendemos que a AP seja atractiva para pessoas qualificadas e que a pirâmide desta composição se comece a inverter. Queremos também ter competências dentro da AP que diminuam o recurso ao outsourcing.
Essa valorização vai ser no salário-base de entrada, na progressão de carreira? E o que vai acontecer com quem já está e os novos que entrarão?
As várias possibilidades estão a ser analisadas e ainda é prematuro dizer qual é via. Depois também serão anunciadas e trabalhadas com os sindicatos.
Estamos na fase de discussão ainda dentro do próprio Governo?
Há uma opção estratégica em torno dos técnicos superiores. As soluções concretas – e são muitas – estão ainda a ser trabalhadas. Ainda não chamámos os sindicatos. Em Outubro, há sempre uma conversa com os sindicatos.
E vai ou não haver aumentos transversais em toda a AP?
Mais uma vez, é prematuro dizer. O ministro das Finanças disse, em recente entrevista, que isso é o desejável no futuro, mas mais não posso dizer.
Posso concluir que aumentos de carreiras especiais são para esquecer neste próximo OE?
Não foi isso que eu disse. As coisas estão ainda a ser trabalhadas.
E que metodologia será usada pelo Governo? Será a inflação de 2021 ou a inflação esperada em 2022?
Ainda é cedo.
No final de 2019, o aumento aprovado foi de 0,3% em linha com a inflação, prometendo o Governo 1% para o ano seguinte, o que não aconteceu. Haverá agora essa compensação?
Mas veio entretanto a pandemia. Sendo objectivo do Governo emergir desta situação pandémica com uma economia tão ou mais forte do que antes com a ajuda do PRR, nesse quadro, as opções têm que ser reanalisadas.
Na sequência da pandemia, neste momento, está a haver o regresso ao trabalho presencial, aos serviços públicos sem necessidade de marcação, mas há muitas queixas sobre filas, pedidos online que não estão a funcionar. Os sindicatos afirmam que não há meios suficientes para estes serviços. Vai haver esse reforço?
A Loja do Cidadão, que é a maior, fazia 5 mil atendimentos por dia antes da pandemia. Imagine-se o que isso criou de acumulado quando fechou. Claro que se reforçou muitíssimo o digital, mas o digital não responde a toda a gente por questão de iliteracia digital. Naturalmente que até se recuperar esse acumulado haverá ainda algumas dificuldades nos serviços.
Tem alguma previsão de quanto tempo será preciso para recuperar esses atrasos?
Diria que um mês, talvez até ao fim do mês de Outubro isso seja possível.
O Estado continua a ser mau exemplo no uso de trabalhadores precários, nomeadamente na área da saúde. Muitos dos profissionais contratados durante a pandemia já foram descartados. Tem ideia de com quantos vai o Estado ficar?
Nas últimas estatísticas de emprego público (segundo trimestre 2021), havia um aumento significativo na Educação e Saúde. A ideia será sempre a de contratar as pessoas que agora estão a termo.
É esse também o caminho da negociação orçamental à esquerda...
É normal e desejável que as áreas fortes do Estado social sejam aquelas com que a esquerda, incluindo o PS, se preocupe.
Já teve reuniões com PCP e BE para este OE22?
Ainda não.
O primeiro-ministro tem dito que os autarcas que vão ser eleitos a 26 de Setembro vão ser os autarcas com mais poderes em Portugal. Em que se vai traduzir esse poder?
É verdade. O processo ficará concluído a 1 de Abril de 2022 com a conclusão de transferência de competências nas áreas mais sociais, acção social, educação e saúde. Muitos autarcas já as têm, porque até agora essa transferência tem sido voluntária. Depois disso, definiremos novas áreas e vamos trabalhar nisso com a ANMP.
A Direcção-Geral das Autarquias Locais já informou a tutela sobre se as transferências para as autarquias sofrem um corte em 2022 por causa da Lei das Finanças Locais? Ou já conseguiu convencer o ministro das Finanças a evitar um corte nas transferências para as autarquias em 2022 por causa da pandemia?
As transferências decorrem de uma fórmula que está na lei e que tem a ver com a arrecadação de impostos do ano anterior. Está na Lei das Finanças Locais e não a podemos mudar. 2022 será calculado com base no ano de 2020 porque o de 2021 ainda não terminou. Ainda estamos a fazer os nossos cálculos. Aqui não é um problema de articulação com o ministro das Finanças. Resulta de uma fórmula que está na lei. Naturalmente, procuraremos outras formas de ajudar. Olhe, dou-lhe o exemplo: o pagamento dos meios tempos nas juntas de freguesia ou o Fundo Social Municipal.
As autarquias candidataram-se a reembolsos de despesas na resposta à covid-19 no valor de 65,7 milhões de euros, mas só há 55,5 milhões. Quem vai suportar esta diferença de cerca de 10 milhões de euros?
Penso que terão que ser os 55 [milhões], que é o valor que está destinado no Fundo de Solidariedade da UE. Será encontrada obviamente uma forma de rateio [entre os municípios].
Esta semana foi lançada uma petição sobre luto parental que defende o alargamento de cinco para 20 dias para o chamado “período de nojo”. A ser assim, isto teria efeitos na AP. Concorda com esta proposta?
Vou ser muito franca: está a fazer-me uma pergunta sobre algo que eu ainda não pensei enquanto governante, mas não consigo deixar de lhe dizer que concordo. Somos mães, somos mulheres e não consigo dizer que não concordo. Não concebo a violência de tal situação.