“Não há um manual” para ser freelancer, mas “contabilistas do bem” e coragem podem ajudar

Perguntámos a quatro jovens freelancers o que gostariam que lhes tivessem dito antes de começarem o próprio negócio. Arranjar uma ajuda para impostos e Segurança Social é provavelmente uma boa ideia, tal como aprender a escolher clientes e desconfiar de sucessos repentinos, aconselham uma ilustradora, uma designer, uma enfermeira e um personal trainer.

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Sofia Rocha e Silva publica muitas “dicas” para pessoas que estão a pensar criar o próprio negócio, mas talvez nenhuma, nem as que falam de facturação, seja tão valiosa como esta: A melhor ‘dica’ para ser freelancer é a persistência. Nada vai acontecer da noite para o dia. Se conhecerem alguém que foi [um sucesso] da noite para o dia, é porque é uma pessoa muito excepcional. E ter esta percepção ajuda muito no início.” Isso e “arranjar um contabilista”, ri-se. “A sério.”​

Falámos com jovens de diferentes áreas sobre como começar um negócio e trabalhar por conta própria, por escolha — “o lado bom do freelance, portantocomo resumiu a ilustradora Clara Não. O que gostariam que lhes tivessem contado? 

Ser freelancer não é para toda a gente (e está tudo bem) 

Essa é a frase repetida por todas as pessoas que trabalham por conta própria com quem falámos. “Não que as pessoas que são freelancers sejam especiais, é mesmo porque há pessoas que prosperam melhor a trabalhar para outros e a fazer carreira dentro de empresas”, diz Sofia Rocha e Silva.

Com o aumento do teletrabalho e da utilização das plataformas digitais, poderá parecer que cada pessoa tem o seu “projecto”ou side hustle, quer para fazer face ao aumento das despesas que um ordenado não consegue comportar, quer para tentar alcançar uma flexibilidade e liberdade financeira cada vez mais prometida por influenciadores no Instagram. Mas quem pondera ser trabalhador independente por escolha não poderá ser empurrado por “uma pressão social”. 

“Começar um negócio pessoal requer bastante coragem, para além de toda a responsabilidade, mas, acima de tudo, coragem para acreditar que algo vai resultar muito antes de conseguires mostrar que sim”, acredita Carolina Reis, enfermeira que integra uma equipa de acompanhamento online na área da nutrição. Como muitas T-shirts dizem: “Não ter um emprego dá muito trabalho”.

Se possível, constrói experiência antes

Quando os ginásios fecharam, Pedro Gonçalves fez o que muitos personal trainers foram obrigados a fazer e começou a dar treinos online. A experiência forçada e temporária, que para muitos profissionais da área resultou numa perda abrupta de rendimentos e de emprego, transformou-se numa escolha e num negócio que agora “emprega quatro pessoas”. Correu bem. 

Para isso, acredita, “foi fundamental construir experiência antes”. No caso de Pedro, isto significou trabalhar primeiro frente a frente com todo o tipo de clientes que entravam no ginásio, antes de começar a treinar pessoas que lhe chegavam ao ecrã do computador recomendadas por amigos ou através do Instagram. De resto, o “segredo para o online” não é diferente do segredo para um treino com resultados: “consistência”. 

Quem nasce primeiro: os clientes ou a freelancer?

Uma das inquietações que Sofia Rocha e Silva mais vezes tenta acalmar no blogue Luscofia parece justificada. Perguntam-lhe muitas vezes como arranjar os primeiros clientes para o negócio que estão a tentar criar. 

Não há uma receita mágica”, diz. E, por telefone, quase conseguimos imaginar o encolher de ombros: “Ainda funciona muito no passa-palavra, mas isso não pode ser razão para desanimarmos no início.”

No design, a área em que trabalha, existem plataformas digitais para quem procura trabalho e para quem procura quem o faça, embora Sofia seja reticente com a maior parte delas. Para profissionais em Portugal, por exemplo, existe a Indústria Criativa. Mas a designer costuma “dizer às pessoas para pensarem primeiro na esfera delas: nas pessoas que conhecem e nos negócios com quem gostavam de trabalhar e com quem podem entrar em contacto.”

No fundo, para teres os primeiros clientes precisas de fazer o possível para estares presente.” E não esquecer: “Os clientes não sabem onde encontrar designers e nós achamos que sim, que há designers em todo o lado. Mas eles não têm contactos, não sabem.”

Idealmente, escolhe os teus clientes desde o início

Bem sabemos: “Às vezes, precisa-se é de dinheiro”, atira a ilustradora Clara Não. No entanto, num cenário ideal, em que existem poupanças que permitem recusar trabalhos, por exemplo, “devíamos começar a seleccionar desde o início”. “Ser freelancer, agora, é basicamente teres a tua marca e o teu nome. E também crias a tua imagem com os clientes que tens. Se começas a dizer que sim a um tipo de clientes, mais do mesmo género virão. Aconselho a fazer as escolhas agora, tendo em vista a forma como vês o negócio no futuro”, diz. 

Clara Silva nunca aceitaria que as ilustrações de Clara Não fossem usadas numa marca antifeminista, por exemplo. No entanto, antes de conseguir que as ilustrações virais no Instagram se traduzissem em clientes, começou por fazer, por exemplo, “a parte editorial de um livro sobre mirtilos”. “Não tem nada a ver com o que eu faço, mas no princípio as pessoas não nos conhecem muito bem. E eu gostei desse trabalho.” Durante um ano, trabalhou como designer para juntar dinheiro e apostar na carreira de ilustração. Com poupanças para emergências, torna-se mais fácil poder dizer sim ou não e preserva-se a saúde mental. “Mau é que se aceitem trabalhos quando as empresas são contra os nossos valores.”

Encontra o teu nicho — e mergulha de cabeça

“Quanto mais nicho, melhor”, resume o profissional da área do fitness que costuma dizer que foi um nicho que o escolheu a ele: mulheres que queiram trabalhar os glúteos. É a única forma de “ganhar pontos na batalha por atenção” que é o Instagram (e não só), diz. “Quando comunicas para toda a gente, não estás a comunicar para ninguém”, cita, uma lição de “marketing digital 101” que começou a estudar no início da pandemia em Portugal. Ou, como dizia também Carolina Reis: “Não faz sentido querer vender batatas que são o nosso negócio e falar sobre o quão boas são as cebolas, as courgettes…” 

A Internet é uma montra de sucessos (e de excepções)

Parece quase impossível não cair na tentação de espreitar o que andam as outras pessoas a fazer, mas Sara Rocha e Silva diz que por vezes o melhor é fechar o separador e “deixar de seguir contas que nos fazem sentir mal”.

“Na Internet, habituamo-nos a números muito grandes e a histórias de sucesso que deviam ser a excepção e de repente parecem a regra e nós parecemos a excepção porque não estamos a conseguir chegar lá”, diz. “Como é um jogo a longo prazo e é uma coisa que tens de fazer dia após dia, não vais conseguir se não o fizeres ao teu ritmo e se não o fizeres para ti e de uma forma mais pessoal”, aconselha, antes de acrescentar entre risos: “De resto, vai haver sempre pessoas supertalentosas com uma capacidade de trabalhar dez horas por dia e não ficarem cansadas.” 

Sofia também tenta fugir das conversas negativas sobre o trabalho de colegas. “Nós temos muito o mau hábito de sentirmos que o trabalho de alguém é mau e até falarmos com os nossos pares sobre como achamos que aquela pessoa está a trabalhar mal”, comenta. “Pode ser um bocadinho tóxico”, diz, “até porque depois fazemos isso em versão espelho para nós próprios”.

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Clara Não Nelson Garrido

A importância de saber dizer “não

É tão importante que Clara Não até o gravou no nome. Neste caso, aplica-se na gestão de clientes e de tempo, e “se na parte cooperativa é chato, quando és só tu torna-se autodestrutivo”. Temos outra T-shirt para isto: “Quem corre por gosto cansa-se.” Clara aprendeu que mais vale dizer um “não” e demonstrar interesse em trabalhar mais tarde do que dizer um “sim” e acumular funções que não consegue depois gerir. 

"A principal desvantagem é a grande responsabilidade, porque dependes de ti e não de um patrão, e sem dúvida que teres uma ideia ou negócio próprio faz com que tenhas mais dificuldade em te desligares do trabalho. Sinto que é mais fácil deixar de teres os teus limites de horários, especialmente”, diz Carolina Reis.

Põe na agenda os teus “inegociáveis”

Carolina acredita que “os anos iniciais de trabalho árduo têm dado os seus frutos”. “No meu caso, principalmente nos dois primeiros anos, foi rara a vez em que tive um fim-de-semana para descansar ou tão poucas férias”, alerta. No entanto, diz, “não é apenas importante trabalhar muito, mas sim trabalhar com qualidade, com um foco e com um objectivo claro”.

O descanso e as horas de sono são fundamentais para preservar a saúde mental e trabalhar melhor e menos. “Marcar férias e ir é mesmo muito importante”, diz Clara Não. 

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Sofia Rocha e Silva DR

Para Pedro Gonçalves, a gestão do tempo “é o maior desafio” para quem tenta construir um negócio online. As barreiras esbatem-se com muito mais facilidade do que são impostas. Por isso, é importante definir horas para os nossos “inegociáveis” e planear o dia seguinte. “Se passear com a tua namorada é inegociável, põe na agenda. Se, para ti, treinar é inegociável, põe na agenda. Se não vais estar a almoçar em frente ao computador, e isso não é saudável”, não se cansa de repetir. 

Marca um encontro com um contabilista de confiança 

No início, vais precisar de alguém que se sente contigo e te fale, calmamente, sobre um tema muito pouco sexy: impostos. E Segurança Social, facturas, recibos, prazos, CAE. É tão importante que Sofia Rocha e Silva reuniu uma lista de “contabilistas do bem” em várias cidades portuguesas e criou uma newsletter só para relembrar a aproximação de datas que, quando esquecidas, podem resultar em multas de centenas de euros. “Acho sempre bom marcar-se uma sessão com o contabilista e, dure o tempo que durar, apontar as dúvidas e sair de lá a entender o que são as coisas. Não podendo fazer isso é estudar como se fosse um tema novo”, aconselha.

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