O património religioso ligado ao mar já tem morada própria
Novo espaço museológico, que surge associado ao Museu Marítimo de Ílhavo, exibe uma vasta colecção de ex-votos, entre outros testemunhos de fé daqueles que viveram marcados pelo mar.
São mais de 200 peças, entre pinturas, imagens de santos, objectos náuticos, que ajudam a contar uma história ainda muito presente em várias localidades portuguesas. Testemunhos da fé e devoção daqueles que fizeram do mar o seu modo de vida e que passaram, agora, a encontrar morada própria. Aquele que é o primeiro centro de religiosidade de temática marítima em Portugal, acaba de abrir portas, no centro da cidade de Ílhavo – no espaço outrora ocupado pelo quartel dos bombeiros - e, até ao final do ano, pode ser visitado gratuitamente. Parte do espólio do Centro para a Valorização e Interpretação da Religiosidade Ligada ao Mar nunca tinha sido apresentado ao público.
“O mar sempre teve este fascínio, quer de sagrado, quer de mito”, introduz Hugo Calão, curador do espaço que surge associado ao Museu Marítimo de Ílhavo (MMI), a propósito da importância da temática deste novo equipamento cultural. Instalada numa terra com fortes tradições marítimas, a unidade museológica faz eco dessa vertente mais local, bem vincada no culto ao Senhor Jesus dos Navegantes, sem esquecer essa perspectiva mais global, justificada pela missão que os portugueses encetaram, através do mar, de “evangelizar e cristianizar” outros povos. Um pouco como acontece com o próprio MMI, que, “a partir dos patrimónios locais, tenta abranger uma identidade nacional”, realça Nuno Costa, director do museu.
O Centro de Religiosidade Marítima está dividido em quatro exposições permanentes, cada uma sobre um tema – “Mar e Devoção”, “Devoção Ilhavense”, “Fé Ilhavense” e “Tesouro” -, contando, também, com uma sala de exposições temporárias, situada junto à entrada. Nesta fase inaugural, e até 30 de Novembro, o espaço museológico apresenta a exposição “Da Colecção ao Museu - Santos em Porcelana da Vista Alegre”, que resulta de uma “doação ao município de Ílhavo pelo capitão Carlos Manuel Teles Paião, pai do Carlos Paião, de 120 imagens de santos”, realça Hugo Calão. “Dentro do que é a porcelana religiosa é talvez a melhor colecção conhecida”, acrescenta.
A sala de exposições temporárias foi também o local escolhido para instalar “O Homem do Gabão”, escultura em gesso, com três metros de altura, da autoria do escultor ilhavense Euclides Vaz (1916-1991). “Foi professor de escultura em Lisboa e marcou o modernismo em Portugal, no que foi a escultura para espaços públicos na época do Estado Novo Belas Artes”, vinca Hugo Calão. “Esta escultura, que foi doada pelo próprio autor ao Museu Marítimo, foi devidamente restaurada e funciona agora como uma espécie de cicerone ao visitante que vem ao centro de religiosidade marítima”, acrescenta.
Da custódia renascentista aos ex-votos
No piso superior, a visita às exposições permanentes tem início a partir da sala “Mar e Devoção”, onde é explorada a relação da religião e das crenças na vida marítima. Nesta sala encontra-se, por exemplo, uma imagem de São Rafael, que navegou durante anos no camarote dos oficiais do navio de pesca do bacalhau com o mesmo nome. Também nesta zona podem ser vistas seis imagens que estavam no altar da capela do paquete Vera Cruz, bem como o altar da capela do Bairro dos Pescadores de Ílhavo.
A visita prossegue, depois, pelo espaço “Devoção Ilhavense”, sala que guarda dezenas de ex-votos, peças que foram oferecidas ao Senhor Jesus dos Navegantes, ao longo dos anos, como forma de agradecimento pela protecção nas aflições no mar. Entre as doações encontram-se diversas pinturas alusivas ao tema marítimo, jarras, partituras tocadas em missas encomendadas e uma miniatura de um lugre bacalhoeiro, que integra anualmente o andor do Senhor Jesus dos Navegantes.
No espaço “Fé Ilhavense”, estão reunidas sobretudo figuras religiosas, roupa e utensílios, pertencentes à Paróquia de Ílhavo, que estavam guardados há anos e anos, e que agora vêem a luz do dia. Nesta sala, que ao contrário das restantes não tem ligação à cultura marítima, encontram-se figuras imponentes como o Senhor dos Paços e a Senhora das Dores, bem como inúmeras peças que são reflexo de várias décadas do culto franciscano em Ílhavo.
Destaque para a sala do “Tesouro”, que guarda uma custódia, de 1575, “encomendada por D. Pedro de Castilho” e que é considerada “uma das mais importantes peças de ourivesaria renascentista”, vinca Hugo Calão. Neste espaço, pode ainda ser vista a cruz peitoral do bispo D. Manuel Trindade Salgueiro, montada sobre relíquia de um pequeno fragmento das ossadas de Francisco Marto, um dos três pastorinhos de Fátima.
O centro de religiosidade marítima está aberto de terça a sábado, das 10h00 às 13h00 e das 14h00 às 18h00, e ao domingo, das 14h00 às 18h00, complementando o circuito museológico ligado à memória marítima e bacalhoeira e que tem epicentro no Museu Marítimo de Ílhavo e ligação ao Navio-museu Santo André (em fase final de requalificação).