Mercados locais de carbono não são voluntários, são imperativos
Nenhum país consegue reduzir as suas emissões em 90% ou mais até 2050 sem a participação ativa das suas cidades. Estas respondem com novos instrumentos e políticas para acelerar a transição para a neutralidade carbónica. Em Portugal também.
Mais de 10.800 cidades em todo o mundo desenvolvem hoje ações para reduzir as emissões de dióxido de carbono e tornar o seu território e a sua população mais resilientes ao impacto das alterações climáticas. Do total, 155 são cidades portuguesas.
A possibilidade desta visão geral das cidades, ou até com mais detalhe, é recente na história da política climática. A plataforma online das Nações Unidas, do Global Climate Action, onde os dados estão acessíveis, foi uma das primeiras iniciativas de reconhecimento de que os governos nacionais precisavam de envolver a organização socio-político-económica dos seus países para chegarem às metas de redução das emissões de dióxido de carbono. Foi lançada um ano antes da cimeira de Paris (2015), deu visibilidade ao que as regiões, as cidades, as empresas, os investidores e as organizações da sociedade civil andavam e andam a fazer pelo clima e fez parte da mudança radical que viria a dar-se com o acordo que se alcançou então na capital francesa e consagrou a importância do envolvimento dos sectores mais diretamente interessados e afetados com as alterações climáticas para o sucesso das metas. Na gíria dos tratados, estes atores são “subnacionais” (regiões e cidades) ou “não-estado” (empresas, investidores e ONG). Os governos nacionais e a União Europeia são as “Partes” que ratificaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC). Os outros que são também parte interessada (stakeholders), mas sem assinarem, são as “entidades não-Partes interessadas”.
Foram precisas quase mais duas décadas depois do Protocolo de Quioto (1997) para os governos nacionais reconhecerem que era necessária uma ação concertada com as não-Partes que são, no fundo, a realidade socio-político-económica dos países que os governos nacionais representam. Esse reconhecimento ocorreu com a cimeira de Paris (2015), que pediu mais ambição para se conter o aumento de temperatura a 1,5°C, sem bons resultados até agora. Seis anos depois, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, insiste que “o mundo continua fora da rota de 1,5°C” e que é “precisa mais ambição”. O 6º Relatório das Alterações Climáticas, do IPCC, recentemente divulgado, confirma que é preciso muito mais ambição, muito mais do que metas.
As cidades são a primeira frente e suportam a maior fatura das alterações climáticas, por força dos eventos extremos e da pressão demográfica. Estes são os números obrigatórios para falar de cidades: entre dois e três por cento da superfície do planeta são cidades, nelas vive hoje mais de metade da população mundial, e viverão dois terços em 2050; consomem 80% da energia e emitem 70-75% das emissões de dióxido de carbono. É como dizer que as cidades são as primeiras interessadas em participar na luta pelo clima e pela qualidade do ar. E as primeiras interessadas em aprender.
Têm, por exemplo, aprendido a cooperar entre si, o que as ajuda a ganhar ambição, e é essa a razão pela qual as alianças internacionais e transnacionais de cidades fortemente comprometidas com a ação climática e com a neutralidade carbónica, como o C40, o Pacto dos Autarcas, ou a Rede de Governos Locais para a Sustentabilidade, têm cada vez mais força política. Algumas delas são anteriores à cimeira de Paris, como o C40, cuja liderança assumiu logo em 2009, durante a cimeira de Copenhaga, um slogan que tem resistido: “enquanto as nações falam, as cidades agem”.
As organizações e os cientistas que fizeram para as Nações Unidas o relatório “Global Climate Action from Cities, Regions and Businesses 2021” reconhecem que o reforço do papel das “entidades que normalmente se sentam fora do processo intergovernamental” (as não-Partes interessadas) tornou possível o Acordo de Paris e que estas se tornaram parte central do seu sucesso, mas têm uma década crítica pela frente. As cidades, em especial, têm de recuperar o ritmo de ações no pós-pandemia do Covid-19, passarem-nas por mais crivos e mostrarem maior eficácia.
A redução urgente das emissões de dióxido de carbono, até à neutralidade carbónica em 2050 une as Partes e as não-Partes interessadas, mas uma diferença de fundo separa-as: a política climática é historicamente uma prerrogativa dos governos nacionais que criam instrumentos, mercados e regulação, de cumprimento obrigatório, e as contas válidas para efeitos de metas nacionais do clima são as suas. Os governos nacionais (as Partes) seguem regras das Nações Unidas para o reporte periódico de dados de emissões de gases com efeito de estufa (GEE), que têm de ser transparentes, detalhados, usando metodologias reconhecidas, e procedimentos de controlo. E o compromisso de ações de cada país, junto das Nações Unidas, para reduzir as emissões de GEE é fixado nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC).
Já as cidades podem desenvolver muitas ações pelo clima, mas não saem da escala local e voluntária, por limitação de poderes e instrumentos. Nenhum país consegue reduzir as suas emissões em 90% ou mais até 2050 sem a participação ativa das suas cidades, dependendo cada vez mais delas para isso. Esta responsabilidade sobre as cidades encaminha-as para experiências de governança, de políticas e instrumentos que lhes estão vedados, fora do seu nível de poder. A ação das cidades articula-se cada vez mais com a dos governos nacionais para um fim último e urgente que é acelerar a redução de emissões de GEE.
Um exemplo é a criação de mercados de carbono e a definição de um preço do carbono que traduza uma realidade local. Os mercados que funcionam a nível nacional e internacional (como o mercado europeu de licenças de emissões) são regulados, logo, obrigatórios. Os projetos que se podem fazer nas cidades até podem ser obrigatórios dentro da sua jurisdição, mas estão fora da regulação nacional, logo, são voluntários.
Matosinhos tem vindo a seguir este caminho, pretendendo criar um mercado (voluntário) local de carbono como instrumento para acelerar a transição para a neutralidade carbónica do município. O mesmo pretendem mais oito cidades da região Norte que vão implementar este mecanismo no âmbito de uma Agenda para a Mobilidade Sustentável desenhada a partir das cidades, uma agenda mobilizadora para a inovação empresarial em preparação no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência de Portugal. E com a ambição de integrarem a rede de 100 cidades europeias neutras em carbono até 2030, uma das missões do Programa de Investigação e Inovação Horizon Europe.
Um mercado de carbono local assenta no conceito de ‘offset de proximidade’, ou seja, as empresas fortemente emissoras podem adquirir créditos para compensar as emissões que não conseguem reduzir com vista a financiar projetos nos territórios onde estão instaladas, beneficiando as comunidades locais. De acordo com um estudo realizado em França em 2016, 60% dos compradores de créditos para offset preferem financiar projetos nas suas regiões.
O percurso que tem vindo a ser seguido por Matosinhos, de forma experimental, tem como ponto de partida o sector da mobilidade, que contribui com 51% das emissões de carbono da cidade, segundo os dados da DGEG.
Ao usarem modos de mobilidade sustentáveis, por exemplo o sistema de partilha de bicicletas elétricas, os munícipes estão a evitar emissões de carbono. Estas emissões evitadas são quantificadas, em tempo real, pela plataforma de sustentabilidade AYR, desenvolvida pelo CEiiA, a partir de metodologias específicas validadas por entidades independentes. O valor das emissões evitadas torna-se tangível pela sua conversão em tokens, assegurando a credibilidade, robustez e qualidade dos créditos de carbono, face à digitalização dos processos de monitorização, reporte e verificação da redução de emissões.
Estes tokens podem ser trocados por bens e serviços verdes no ecossistema local, nomeadamente por outros serviços de mobilidade, recompensando os cidadãos pela adoção de comportamentos sustentáveis, funcionando como uma ‘moeda’ local da sustentabilidade.
No mercado de carbono, as empresas locais que adquirirem estes tokens para compensação das emissões geradas, estão a contribuir para o financiamento e/ou investimento em projetos para a neutralidade carbónica do município.
As transações precisam de um preço, que é o preço do carbono, e a questão é hoje tão global como local. Uma boa parte do mundo vai ter de a discutir na próxima cimeira do clima (COP26), em Glasgow, em Novembro, e a respetiva agenda de eventos paralelos já a contempla. O caso de Matosinhos é um dos projetos selecionados para serem apresentados na parte dedicada ao preço do carbono, aos mercados voluntários e à neutralidade carbónica.
Pensar para as cidades um quadro regulatório que contribua para conformar o seu trabalho para as NDC, com benefício direto, quantificável e verificável para as metas nacionais do clima é um desafio iminente para o desenvolvimento e mobilização do contributo das cidades, que já não é voluntário, é imperativo.
As autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico