Três razões para elogiar o Despacho n.º 6605-A/2021
Ao definir as Aprendizagens Essenciais como referência curricular, o Despacho n.º 6605-A/2021, do Ministério da Educação, é um instrumento de trabalho clarificador e relevante.
A recente definição dos referenciais curriculares trazida pelo Despacho n.º 6605-A/2021, de 6 de julho (referido adiante como Despacho), abriu espaço a um diálogo intenso nos media, repercutindo temas que vêm ocupando especialistas do currículo há décadas, todos relacionados com a questão matricial: o que é que vale a pena aprender na escola? Ou como se seleciona o conhecimento que se toma por relevante ser aprendido na escola?
Na verdade, não há tema mais fecundo e mais controverso do que o dos objetivos educativos. Nenhuma teoria, proposta curricular ou taxonomia de objetivos educativos obteve até agora unanimidade, apesar de todas as investigações, teorias, modelos, debates científicos, controvérsias políticas, polémicas mediáticas. No entanto, a definição clara, coerente e fundamentada das aprendizagens escolares relevantes é essencial para os alunos e para os professores, a quem cabe a responsabilidade de transformar em ato, na prática, as intenções educativas enunciadas. O Despacho citado surgiu num momento oportuno, quando os professores iniciavam o planeamento pedagógico do ano seguinte, usual no mês de julho. E contém um enorme potencial para a organização pedagógico-didática, pelo menos, por três razões.
1. Sempre que entram em aula, os professores têm em mente, implícita ou explicitamente, perguntas como ‘O que é que quero que os alunos aprendam hoje?” ou ‘O que é que vale a pena que os meus alunos aprendam comigo na aula de hoje?’. Sabem que o resultado dos esforços ali despendidos (ensino e aprendizagem) depende não só do que será dito, mas também do modo como os alunos se vão apropriar disso e como o vão transformar em aprendizagem significativa. Sabem que são eles, professores, os fazedores do currículo real a partir de um quadro comum a todo o sistema educativo, definido por documentos que enunciam as intenções educativas num dado momento histórico. As aprendizagens que promovem nos alunos não têm como horizonte o exame, embora esta prova seja importante na vida de muitos adolescentes e, como tal, faça parte também do trabalho em aula. Os horizontes da Educação são muito mais amplos, estão definidos como finalidades, na Lei de Bases do Sistema Educativo. Por esta razão, o Despacho é um excelente instrumento de trabalho no campo da educação, pois estabelece uma articulação coerente entre os diversos níveis de atuação educativa: as finalidades da educação (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), os objetivos educativos gerais e os conteúdos que são o seu suporte (Aprendizagens Essenciais, AE) e os objetivos específicos e operatórios (sequências de aprendizagem concebidos pelos professores). Dá perspetiva e sentido ao trabalho permanente do professor para além dos exames, sem, contudo, os excluir.
2. Numa instituição de ensino, trabalham para a mesma finalidade centenas de profissionais, que se ocupam de crianças e jovens durante 15 anos (educação pré-escolar incluída). Desengane-se quem pensa que os professores trabalham isolados, numa lógica individual plena. De facto, a escola é uma estrutura organizacional interativa, em que as ações dos profissionais se interrelacionam continuamente. Na aula, o professor toma decisões e orienta a ação por si, que a dirige naquele espaço e tempo concretos. Mas, antes e depois da aula, milhares de decisões são tomadas em equipa, em grupos variados (conselhos de turma, departamentais, interdepartamentais, entre outros). É fácil compreender que os referenciais curriculares têm de constituir um articulado consistente, para que todas as componentes do trabalho se interrelacionem num todo coerente. No entanto, até agora esse articulado era inexistente.
Durante muitas décadas, a lógica era quase exclusivamente disciplinar: recaía sobre especialistas em dado campo de saber que selecionavam, da sua disciplina académica, a matéria considerada consensual num dado momento histórico pela respetiva comunidade científica. Os programas das disciplinas (a matéria a dar, i.e., listas de conteúdos) eram revistos isoladamente, uns com frequência, outros muito espaçadamente. Ao longo do tempo, as lógicas de desenho curricular foram mudando, mas, no nosso sistema educativo, coexistiam programas disciplinares construídos com linguagem curricular técnica e pedagógica muito diversa, acarretando problemas e mal-entendidos na comunicação escolar (entre professores, destes com outros profissionais da educação, da escola com a família) e em todas as áreas ligadas à educação escolar (professores, diretores, consultores, equipas de produção de provas e exames, responsáveis por desenho curricular, autores de materiais didáticos, entre outros).
A importância de os profissionais da educação assumirem um mesmo quadro de entendimento técnico e pedagógico e de terem uma linguagem comum é muito fácil de compreender. Um exemplo. O resultado que se espera do aluno após uma dada ação intencional e estrategicamente orientada para uma dada aprendizagem desejada é verbalizado através de frases que expressam o ‘objetivo educativo’. Esta noção também aparece com outras designações (‘finalidade’, ‘intenção’, ‘propósito’, ‘meta’; objetivos mínimos e de desenvolvimento, no modelo de ensino para a mestria; objetivos gerais e específicos, definidos em termos comportamentais ou de performances, no modelo linear de análise por objetivos; objetivos gerais, metas e indicadores de desempenho, nos currículos baseados em standards para maior controlo da matéria dada). Parecem sinónimas, mas não são, porque a cada uma correspondem procedimentos técnicos e pedagógicos diferentes. Quando os professores planificam, em equipa, as ações a realizar (com material, procedimentos e instrumentos específicos), a dificuldade começa logo no entendimento mútuo quando na base há referenciais desfasados (cada disciplina tem o seu associado a um quadro histórica e pedagogicamente diferente dos restantes). É, por isso, fundamental um quadro curricular comum. Por esta razão, este Despacho é um instrumento de trabalho inestimável, na medida em que apresenta de modo claro um constructo curricular altamente inovador, corolário de um desenho curricular estabelecido por especialistas das áreas disciplinares académicas em diálogo com educadores e professores, mediante as diversas associações profissionais, num processo orientado em função das finalidades educativas expressas no Perfil dos Alunos, construído com uma linguagem técnica e pedagógica transversal a todas as disciplinas.
3. O trabalho na escola garante aprendizagens multifacetadas: conteúdo ou matéria (conhecimento factual, conceptual, como factos, conceitos, linguagens, códigos, ideias, teorias, tópicos), capacidades (conhecimento processual, conhecimento metacognitivo, como procedimentos, comportamentos, técnicas, capacidades, estratégias), atitudes e valores. Em si mesmas ou articuladas entre si para resolução de problemas concretos ligados a casos/situações reais (competências), todas estas aprendizagens são objetivo e objeto de trabalho educativo. Por ser abrangente, a palavra ‘aprendizagens’ como designação daquilo que se espera do aluno como resultado da ação pedagógica escolar é uma escolha feliz. Como o saber não ocupa lugar, todas elas são importantes.
Acontece, porém, que a decisão é outra e muito mais difícil. A decisão é: ‘dispondo de cerca de nove meses (± 40 semanas), que aprendizagens têm de ser absolutamente garantidas antes que o aluno frequente o ano escolar seguinte?’ Esta decisão cabe aos professores em face dos alunos com os quais trabalham. Um plano de estudos definido com base no que é absolutamente imprescindível, no que não pode ficar de modo algum comprometido, mostra claramente aos professores que todas as aprendizagens importantes que entendam possíveis podem naturalmente ter lugar na aula, mas sinalizam as que são nucleares e não podem ficar comprometidas com a justificação de que, para abordar o todo, aprendizagens essenciais não foram garantidas. Em Português, por exemplo, quando o objetivo educativo se define como “O aluno é capaz de ler e interpretar narrativas de autores portugueses do século XIX”, o foco é o processo efetivo de leitura integral de obras inquestionáveis na educação literária, sendo claro que o professor deverá convocar todo o seu conhecimento profissional para garantir que os alunos leem na íntegra e desenvolvem uma compreensão e interpretação cabal das obras lidas. Se a formulação do objetivo é acompanhada de uma sequência linear de micro-objetivos comportamentais que o dissecam e o desdobram em múltiplos indicadores de desempenho, o objetivo geral fica diluído porque a atenção de professores e alunos se fixa nos comportamentos visíveis e mensuráveis, que, por si só, não garantem a aprendizagem desejada.
É o caso, por exemplo, da leitura d’ Os Maias, de Eça de Queirós, no 11.º ano. A situação atual (não abrir o livro e decorar sebentas com as listas das categorias da narrativa referentes ao romance queirosiano para debitar no teste) é deplorável, porque o essencial não é garantido. Faz-se de conta que “Ler Os Maias, de Eça de Queirós”, é um objetivo cumprido: esta aprendizagem fica sumariada garantindo que o programa foi cumprido; os alunos riem-se porque pensam ter ‘enganado’ o professor ao tirar positiva no teste sem sequer terem aberto o livro. Ora, ‘ler Os Maias na íntegra’ não é uma aprendizagem mínima, é uma aprendizagem essencial, um desafio exigentíssimo para professores e alunos.
Construídas com base em vários documentos programáticos anteriores, as AE não só comunicam os objetivos gerais da disciplina (o que se pretende que os alunos verdadeiramente aprendam), mas também referem ações estratégicas de ensino para a sua consecução como possibilidades pedagógico-didáticas e não como objetivos comportamentais, cujos riscos educativos estão identificados na Didática do Português. Ao definir as AE como referência curricular, o Despacho é um instrumento de trabalho clarificador e relevante.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico