Renaturalizar tem de ser palavra de ordem em cidades sustentáveis
Transformar as nossas cidades e adaptá-las às alterações climáticas e às transformações demográficas “é um problema e um desafio de todos nós”. As autarquias devem liderar o processo, mas envolvendo todos e trabalhando com o vizinho do lado. Até para gastar bem o dinheiro que virá da Europa.
O desenvolvimento urbano sustentável abrange várias dimensões da vida das nossas cidades e pede “uma mudança de paradigma”, uma transformação que as duas especialistas ouvidas pelo PÚBLICO concordam em resumir em dois princípios: “renaturalização e re-humanização”. Como ter cidades prósperas sem que isso queira dizer maiores, com uma pegada ecológica mais marcada. Foi esse o tema da última de dez Conversas Urbanas, uma websérie do PÚBLICO Ao Vivo e um podcast, que decorreram nas últimas semanas, com o apoio da Gaiurb.
Mais de metade da população mundial vive nas cidades, quando as áreas urbanas correspondem a apenas 3% da superfície terrestre. E é responsável por cerca de 60% do consumo de energia e de 75% das emissões de gases com efeito de estufa. Em 2050, 70% da população deverá ser “urbana”. Por cá, não fugimos à regra. Mais de 50% da população está concentrada em 31 municípios, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.
Se desde a revolução industrial as cidades cresceram “de forma extensiva e intensiva”, já passou da hora de essa lógica dar lugar a outra, que passe pela “valorização dos seus recursos e activos”, uma lógica de “retracção e reversão de determinadas soluções”, explica Cristina Cavaco. A arquitecta, professora e investigadora na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa lembra as “florestas de candeeiros” ou “passivos territoriais” que as cidades herdaram das falências ocorridas no tempo da Troika. “Muitas delas não têm já viabilidade, porque estamos em claro Inverno demográfico e com cerca de 730 mil fogos vagos. Em muitos desses casos, é necessário reverter”, defende. Mesmo com “imparidades” associadas a esses investimentos falhados.
Os resultados preliminares dos Censos 2021 revelaram um forte abrandamento da construção nova, mas ainda assim o país continuou a edificar de raiz, nota. “A população decresceu cerca de 2%, mas o número de alojamentos e o número de edifícios cresceram, 1,4% e 1,2% respectivamente”, sublinha a investigadora que na última década coordenou a elaboração de vários projectos e documentos de política de urbanismo, com destaque para o Relatório Nacional para a Nova Agenda Urbana – Habitat III (2016), um documento estratégico que as Nações Unidas publicam a cada 20 anos.
Menos cinza, mais verde
Numa lógica de valorização e regeneração, algumas das “novas ruínas” podem tornar-se espaço público verde. Ana Teixeira Mesquita, arquitecta paisagista e membro da direcção da Associação Nacional das Coberturas Verdes (ANCV), criada em 2015 para promover as soluções de base natural (lá fora nature-based solutions), dá o exemplo do já icónico nova-iorquino Park in The Sky, o que nasceu numa linha férrea elevada desactivada e transformou o Meatpacking District em bairro tendência. Por cá, afiança, essa incorporação do verde na construção já não é algo que as pessoas vejam “como uma solução do norte da Europa”. Os projectistas já pensam verde quando desenham e mesmo “alguns municípios têm nos seus regulamentos já as coberturas e as fachadas verdes”, partilha, sublinhando que o primeiro guia técnico que define um guião para projecto, construção e manutenção de coberturas verdes foi publicado em 2020, pela ANCV com a secção regional do Centro da Ordem dos Engenheiros do Centro e a Associação Nacional para a Qualidade nas Instalações Prediais.
A arquitecta dá os exemplos da Praça de Lisboa, no Porto, onde nasceu o “instagramável” Passeio dos Clérigos – “a maioria das pessoas não reconhece como cobertura verde, é engraçado" –, e do Parque Camões, em Guimarães, mais recente, que surgiu na cobertura de um grande parque de estacionamento e “no miolo de uma cidade bastante consolidada”. Mas ressalva: as coberturas verdes “não devem ser encaradas como uma oportunidade para construir mais, mas sim uma oportunidade para construir melhor”. A representante da ANCV, que tem por missão unir indústria, investigação e municípios, dá também conta de que essa articulação já está a acontecer, em cidades como o Porto ou Évora.
As vantagens – ou “serviços de ecossistema” – de um crescimento verde são várias e aumentam na proporção em que aumentarem esses ecossistemas. “No caso das coberturas verdes, há aqueles mais imediatos, associados ao aumento da vegetação em zonas urbanas, o aumento de oxigénio e a captura de carbono, mas num cenário em que vamos ter alterações climáticas, a gestão da água é muito importante”, elenca a arquitecta. Ao impermeabilizar o solo, quebra-se o ciclo da água. E uma cobertura verde só por si não fecha esse ciclo, mas, explica Ana Teixeira Mesquita, “permite reter grande parte da água das chuvas” e aproveitá-la combinando com outras soluções de base natural. “Recebo-a numa cobertura que tem um jardim, parte fica reservada no sistema, é utilizada para as plantas e é evapotranspirada e o excedente posso infiltrar de forma natural, seja através de um rain garden, um túnel de infiltração, ou outra solução”.
E as coberturas verdes não são só para a cobertura dos edifícios, estando em causa na verdade “qualquer tipo de plantação sobre uma laje, seja no topo de um edifício ou à escala do solo”, explica.
Assim como as soluções de base natural não são só coberturas verdes. “Veja-se o problema da subida do nível do mar nas cidades. A nossa abordagem automática é construir paredões e outras estruturas cinzentas, incrivelmente caras, quando podemos aplicar a natureza, com cordões dunares e outras formas. A mesma coisa com o isolamento térmico num edifício: pode passar por aumentarmos a espessura de XPS, que é um derivado do petróleo, e que a partir do momento que é produzido vai acompanhar-nos muito muito tempo, ou usarmos vegetação”. Uma abordagem que “custa um terço do valor da abordagem cinzenta”, releva.
A mudança que cabe a todos
“Requalificar o edificado” parece ser a palavra de ordem. “É esse o foco do Green Deal Europeu, o qual faz parte a [estratégia] Renovation Wave. A Comunidade Europeia vê o edifício como o principal actor para chegar ao objectivo de sermos o primeiro continente neutro [em carbono] em 2050”, lembra Ana Teixeira Mesquita. É nos edifícios que é consumida “40% da energia” gasta em toda a União e os edifícios “emitem 36% dos gases com efeito de estufa”. Ao mesmo tempo que “300 milhões de europeus sofrem para pagar as contas de energia, não conseguem aquecer a sua casa”.
Talvez seja por isso, admite a arquitecta paisagista, que o Fundo Ambiental do Ministério do Ambiente atribua incentivos para a incorporação de soluções de base natural – 70% até 3.000 euros – apenas a construções já existentes e alocadas à habitação. “O foco é mesmo requalificar o edificado, e muito especialmente na questão energética: seja na autoprodução de energia, no isolamento térmico ou na incorporação de vegetação”, insiste.
Na desejada mudança de paradigma, Ana Teixeira Mesquita acredita que “os municípios são o grande motor”, já que “tudo o que é benefício ambiental terá de ser à escala municipal”. Cristina Cavaco concorda que sejam eles o pivô das acções, mas defende que o façam numa lógica “intermunicipal” e que o processo envolva todos, da sociedade civil às empresas.
“Não é porque um município faz uma ciclovia que nós vamos ter a questão da mobilidade resolvida. Precisamos de estratégias conjuntas e que não passam só pelos actores públicos. A ideia de região e de metrópole tem de vir ao de cima”, vaticinou. Uma ideia que sublinhou quando questionada sobre se estávamos m condições de gastar bem os milhões que chegarão da Europa – uma das prioridades do Plano de Recuperação e Resiliência português é a transição verde e o combate às alterações climáticas, com medidas que representam 38% do total do nosso plano.
“Falamos das águas mas podemos falar dos incêndios florestais, é uma questão de ordenamento. Não sendo possível reverter em pleno, devemos procurar introduzir soluções que mitiguem, que permitam responder melhor e criar resiliência das nossas cidades à ocorrência de fenómenos extremo que sabemos que vão acontecer e vão acontecer com mais frequência e com mais gravidade”, alerta Cristina Cavaco.
“Muito crítica” sobre a forma como os fundos comunitários do último quadro comunitário de apoio foram e estão a ser aplicados nas cidades, a professora universitária deixa um desejo: “Precisamos de falar uns com os ouros, de coordenar acções, de perceber quais é que são as acções verdadeiramente estruturantes, numa ótica regional. A ideia de região e de metrópole tem de vir ao de cima.”