A Europa abre portas a Amal, a marioneta refugiada à procura da mãe
Uma marioneta gigante partiu esta semana da fronteira entre a Síria e a Turquia, rumo a Inglaterra. Além de um gesto arrojado pela crise migratória, peça The Walk é uma chamada de atenção para as condições adversas que muitas crianças enfrentam no mesmo percurso.
Esta semana, a pequena Amal partiu numa travessia por muitos já desbravada. Não será a primeira — nem a última — criança a atravessar a Europa à procura de um futuro melhor. Amal é uma menina de nove anos que fugiu da Síria e agora segue em busca da sua mãe. Não é de carne e osso, mas simboliza as milhares de crianças refugiadas que todos os anos chegam à Europa. Será agora acolhida por vários países até chegar ao seu destino, Manchester, no Reino Unido.
Com 3,5 metros de altura e expressões faciais manipuláveis, Amal é a marioneta protagonista daquele que será “provavelmente o maior festival de sempre”, antevê em conversa com o P3 David Lan, produtor da peça The Walk, que arrancou terça-feira, 27 de Julho. “É um grande espectáculo itinerante, com excepção de todas as noites ser uma performance completamente diferente”, descreve. Entre Julho e Novembro, Amal vai percorrer oito mil quilómetros e cruzar oito países num acto de solidariedade que não quer deixar esquecidas as crianças refugiadas. Por isso mesmo, tanto na equipa que acompanha a marioneta como entre aqueles que a vão receber, há refugiados a participar no projecto.
Na partida da cidade turca de Gaziantep, na fronteira com a Síria, Amal vive ainda com a inocência e ingenuidade de uma criança. Se não fosse a guerra estaria a ter uma vida normal. Não sabe que existe um país chamado Turquia, e certamente nunca ouviu falar da Grécia. Durante a viagem aprende, cresce e muda. Pela altura em que chega ao Reino Unido, vai ser uma jovem muito diferente da criança que era. Aliás, a 24 de Outubro celebrará os seus dez anos em Londres com uma grande festa de aniversário — um marco importante na sua transformação.
O nome Amal, de origem árabe, significa “esperança”, e é precisamente isso que a peça quer celebrar — “o potencial que estas pessoas carregam com elas”. Não é um ensaio sobre miséria e trauma, mas antes sobre a resiliência e a força que também estão presentes na condição de refugiado, explica David Lan.
Que bem pode a arte fazer?
Tudo começou com uma visita ao campo de refugiados em Calais, em França — entretanto desmantelado e popularmente conhecido como “a selva”. Lá nasceu a companhia de teatro Good Chance, há cerca de seis anos, quando dois dos actuais membros repararam que havia muita segmentação social e decidiram implementar um teatro. Montaram, então, um espaço onde as pessoas podiam conviver umas com as outras, independentemente da sua nacionalidade ou cultura. “Por cinco minutos, podiam ser elas próprias e falar delas próprias — quem são, por que são refugiados”, recorda o produtor.
Seguiu-se uma peça baseada nas experiências vividas em Calais — justamente apelidada de A Selva —, que contou com alguns actores refugiados e recriou parte do campo. Esteve em cena em Londres, Nova Iorque e São Francisco, e para o ano espera-se que regresse a Nova Iorque. Uma das personagens é Amal. Na peça é interpretada por uma criança, “e embora não tenha muitas falas, expressa a vulnerabilidade deles, mas também o potencial”, aponta David Lan, também produtor de A Selva.
Tendo ouvido vários testemunhos sobre os perigos das longas travessias, a companhia teve a ideia de recriar a viagem como uma obra de arte. O mundo mudou com a crise migratória e não há como ignorá-lo, defende Lan: “Não somos políticos, não somos assistentes sociais, somos artistas. Oferece-se o que se pode fazer. Se eu fosse um sapateiro, faria sapatos. Temos de reconhecer o que aconteceu, há neste momento oito milhões de pessoas no planeta que não estão a morar nas suas casas.”
Para isso, faria ainda mais sentido que fosse a pequena Amal a caminhar de Gaziantep (o mais perto possível da fronteira da Síria) até ao Reino Unido. Encorpada por uma marioneta gigante, realista e emocional, produzida por uma empresa na África do Sul, Amal será acolhida pelos vários países que atravessa. E vai cruzar-se com vários artistas, que a produção desafiou a preparem o acolhimento. “Dissemos uma coisa muito simples: uma criança vai à tua cidade, ela é muito nova; caminhou muito, está cansada, tem fome, está assustada, está sozinha, está à procura da mãe dela; como a receberias, como artista, o que farias?”, conta.
Com o escritor e realizador palestiniano Amir Nizar Zuabi a liderar artisticamente o projecto, Amal tem à sua espera mais de cem eventos de acolhimento ao longo da rota, fruto de uma colaboração com municípios, presidentes de câmara, líderes religiosos e organizações humanitárias. Não há dois eventos iguais. Será acolhida em óperas, salas de concerto, catedrais, mesquitas, pontes, piscinas termais e até um cemitério.
Em Mersin, na Turquia, vê o mar pela primeira vez. Entra na União Europeia de barco, pela ilha grega de Chios e, mais tarde, em Atenas, espera-a uma grande celebração no centro da cidade. Por Itália, uma habilidosa avó de Bari vai ensiná-la a fazer massa orecchiette, e será recebida no Teatro di Roma e no Piccolo Teatro di Milano. Em Bruxelas, é presenteada com uma coreografia de Sidi Larbi Cherkaoui e em Londres será acolhida pela Royal Opera House, o Teatro Nacional, as principais catedrais e o mayor da cidade. Até a cantora de ópera Joyce DiDonato dá um concerto em sua honra.
Mas, embora vá experienciar momentos de conforto, também vai ter de superar obstáculos no seu caminho, que envereda também por sítios onde os refugiados habitualmente vivem. Vai perder-se nas ruas labirínticas de Atenas, em Milão magoa-se num joelho e em Nápoles é vencida pelo cansaço e faz uma birra. “Vai enfrentar dificuldades e às vezes vai ficar muito assustada. Vamos descobrir enquanto caminhamos. Esperamos que muitas pessoas sejam muito acolhedoras, mas talvez nem toda gente seja”, antecipa Lan.
Depois de percorrida a jornada, Amal deixa duas coisas para trás: um “corredor de amigos” — pessoas de boa-fé que de alguma forma interagiram positivamente com ela durante o percurso —, e uma angariação de fundos para a educação das crianças refugiadas em vários níveis escolares. Além disso, está implementado um programa de educação em cada território por onde passa, no qual uma equipa e um produtor trabalham com escolas e jovens sobre a migração.
Atravessar fronteiras em plena pandemia
A pandemia complicou a logística da peça, que arranca com um atraso de quatro meses, mas não foi dissuasora. Se tanto, adensou a necessidade de a fazer, defende David Lan. “Para os refugiados, a pandemia tornou o que já era mau em algo ainda pior. Não podíamos simplesmente dizer ‘desculpem, é demasiado difícil [fazer a travessia], vamos ficar em casa’.” A entrada nos países faz-se “sem exigências”, e de forma inteiramente colaborativa entre as cerca de 300 organizações parceiras.
A equipa é formada por 25 pessoas de várias nacionalidades, das quais 11 são titereiros da marioneta e trabalham divididos em três grupos durante a viagem, juntando-se ainda as equipas de redes sociais e documentário. “São muitos obstáculos, mas um obstáculo é um desafio e, de alguma forma, encontra-se uma maneira”, relativiza. E reitera: “Quando lês sobre as condições em que as pessoas estão a viver nos campos de refugiados por causa da pandemia, em todos os países da Europa, incluindo Inglaterra, tens de fazer alguma coisa.”
David Lan explica que a simplicidade facilita a compreensão e envolvimento dos espectadores e que, por isso, o resultado final foi já muito refinado desde o começo do projecto. “Se resultar será porque é muito simples: ela é uma criança à procura da mãe. Nós sabemos como se responde a uma criança que está em apuros, que caminha pela rua sozinha”, explica.
Prefere não revelar o desfecho da viagem de Amal, pois, afinal de contas, é uma peça. Oferece apenas um comentário: “O final será realista, e não sentimental. Um refugiado vai demorar muito tempo a procurar um lar, mas o mundo vai ter um grande acolhimento para ela.”
Quanto à marioneta que dá vida a Amal, já recebeu convites para várias partes do mundo. Por enquanto, ficará pela viagem de Gaziantep a Manchester — até porque qualquer outra passagem seria um desvio da rota dos refugiados, correndo o risco de se perder o sentido da peça. “Assim que ela chegar a Manchester, está de certa forma livre”, remata.