“Otelo, o homem do 25 de Abril” e “uma figura controversa”. As reacções à morte de Otelo Saraiva de Carvalho
Políticos, militares e historiadores lembram Otelo Saraiva de Carvalho como o herói da Revolução, mas reconhecem que o capitão de Abril se tornou numa figura controversa. Marcelo Rebelo de Sousa sublinha a “importância capital que teve no 25 de Abril”.
“É ainda cedo para a História o apreciar com a devida distância”, diz Marcelo Rebelo de Sousa numa nota publicada no site da Presidência da República sobre a morte de Otelo Saraiva de Carvalho. “No entanto, parece inquestionável a importância capital que teve no 25 de Abril, o símbolo que constituiu de uma linha político-militar durante a revolução, que fica na memória de muitos portugueses associado a lances controversos no início da nossa democracia, e que suscitou paixões, tal como rejeições.”
A notícia da morte de Otelo Saraiva de Carvalho está a marcar a manhã deste domingo com reacções de várias personalidades que o destacam sobretudo como “o homem do 25 de Abril” e, ao mesmo tempo, como uma “figura controversa”.
Manuel Alegre, histórico dirigente do PS e amigo de Otelo, destacou-o em declarações à TSF como “o homem do 25 de Abril, o homem que coordenou o 25 de Abril”. “É o homem desse dia a que Eduardo Lourenço chamou a liberdade feita dia”, afirmou, sublinhando que “essa é a memória que temos de guardar do Otelo”.
Na última conversa que tiveram falaram da saúde de Otelo. “Ao princípio estava desanimado, mas disse que ia lutar para recuperar. Deu até a sensação de que estava em recuperação. Infelizmente, isso não foi possível.” Para Manuel Alegre este “é um dia de luto para Portugal, porque Otelo é um grande símbolo do 25 de Abril”.
Já o Presidente da República, “consciente das profundas clivagens que a sua personalidade suscitou e suscita na sociedade portuguesa, evoca-o, neste momento como o capitão que foi protagonista cimeiro num momento decisivo da História contemporânea portuguesa”. Sublinha que foi “um dos mais activos capitães de Abril”, que “exerceu funções muito relevantes durante a revolução e candidatou-se à Presidência da República em 1976”.
“Afastado do poder na sequência do 25 de Novembro de 1975, viria a ser considerado, pela Justiça, envolvido nas FP25, condenado e amnistiado.” Ainda na sua nota, Marcelo Rebelo de Sousa recorda o que disse no último 25 de Abril “acerca da aceitação que os portugueses devem procurar construir, todos os dias, relativamente à sua História Pátria”.
“O Governo lamenta o falecimento do coronel Otelo Saraiva de Carvalho e endereça as mais sentidas condolências à sua família, assim como à Associação 25 de Abril”, lê-se também num comunicado do gabinete do primeiro-ministro.
“Otelo Saraiva de Carvalho foi o coordenador operacional da acção militar do Movimento das Forças Armadas, que, no dia 25 de Abril de 1974, derrubou o regime do Estado Novo, pondo fim à mais longa ditadura do século XX na Europa e abrindo caminho à democracia”, acrescenta. "A capacidade estratégica e operacional de Otelo Saraiva de Carvalho e a sua dedicação e generosidade foram decisivas para o sucesso, sem derramamento de sangue, da Revolução dos Cravos. Tornou-se, por isso, e a justo título, um dos seus símbolos. Neste dia de tristeza honramos a memória de Otelo, como um daqueles a que todos devemos a libertação consumada no 25 de Abril e, portanto, o que hoje somos.”
Já ao final desta tarde, a Associação 25 de Abril, presidida pelo tenente-coronel Vasco Lourenço – que assume ver “partir um grande amigo” – homenageia o “homem de enorme coragem e generosidade, sempre ao serviço dos seus ideais, com um coração onde cabiam, acima de tudo, os mais genuínos sentimentos da amizade”.
Convicta de que Otelo deixa “um legado que a memória dos portugueses não esquecerá”, a Associação - fundada em 1982 por oficiais dos quadros permanentes das forças armadas, mas hoje aberta a outros militares profissionais e civis – considera que o “país fica mais pobre” com a partida do Capitão de Abril.
Sem dúvidas, a Associação, numa mensagem assinada por Vasco Lourenço, escreve: “Otelo ficará na História de Portugal como um dos principais Capitães de Abril.”
“Pessoalmente, vejo partir um grande Amigo, a quem envio um enorme abração de Abril! Até sempre, caro Otelo”, conclui Vasco Lourenço.
"Figura carismática"
Em declarações à TSF, o coronel Sousa e Castro, porta-voz do Conselho da Revolução, descreveu Otelo Saraiva de Carvalho como um herói nacional, “um homem generoso” que cometeu erros, mas sublinha que “ninguém vai apagar” os feitos do capitão de Abril.
Já à Agência Lusa, o antifascista e antigo membro do comité central do PCP Raimundo Narciso evocou Otelo Saraiva de Carvalho como a “principal figura da Revolução do 25 de Abril pelo seu papel na coordenação do movimento das Forças Armadas”.
Raimundo Narciso, que já foi membro da direcção da Associação do 25 de Abril, lembrou ainda o papel desempenhado por Otelo Saraiva durante o “período revolucionário”, logo a seguir ao 25 de Abril, admitindo que, mais tarde, o ora falecido se tenha tornado posteriormente numa “figura controversa”. “Mas teve o apoio da esquerda e dos populares e nunca deixou de ser uma figura carismática”, observou.
Segundo Raimundo Narciso, a participação de Otelo no caso das FP-25 de Abril acabou por prejudicar a sua imagem, mas isso “não pode fazer esquecer o seu papel na organização”. “Otelo nunca deixou de ser uma figura simbólica do 25 de Abril e que tem a simpatia do povo português.”
Várias figuras públicas utilizaram a rede social Twitter para reagir. João Paulo Batalha, ex-presidente da associação cívica Transparência e Integridade, manifestou nesta rede social a sua gratidão: “O plano político de Otelo Saraiva de Carvalho no processo revolucionário que se seguiu foi derrotado, e estou também grato por isso. É impossível (e fundamentalmente injusto) passar julgamento sobre toda a vida de um homem. Houve violência, abusos e arbitrariedades no processo revolucionário, que felizmente foram vencidos. Ter conduzido a acção militar que acabou com a ditadura vale mais do que tudo. Otelo Saraiva de Carvalho venceu quando era fundamental que vencesse; e perdeu quando era fundamental que perdesse. Acho que ficámos todos melhor assim. O (muito) que nos falta resolver na qualidade da nossa democracia cabe-nos agora a nós. Obrigado, capitão”.
O eurodeputado do PS, Carlos Zorrinho, também deixou uma mensagem no Twitter: “A história julgará a sua coragem, o seu arrebatamento e os seus erros, mas ficará na nossa memória como um forte símbolo de Abril. Que descanse em paz.”
Já a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, aproveitou igualmente o Twitter para assinalar a morte de Otelo: “Uma figura maior do que a sua própria história. Estratega do 25 de Abril, será sempre lembrado como um dos libertadores de Portugal.”
"O maior símbolo individual do MFA”, diz Ferro
“Sobre o falecimento de Otelo Saraiva de Carvalho deve registar-se no essencial o seu papel no levantamento militar do 25 de Abril. O momento do seu falecimento não é a ocasião para registar atitudes e posicionamentos que marcam o seu percurso político”, refere, por se lado, uma nota do gabinete de imprensa do PCP, que endereça ainda condolências à família e à Associação 25 de Abril.
“Apesar dos excessos que se possam apontar, nomeadamente no período pós 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho foi, e será sempre considerado, o maior símbolo individual do Movimento das Forças Armadas”, pode ler-se numa mensagem de pesar do presidente da Assembleia da República a que a agência Lusa teve acesso.
Segundo Ferro Rodrigues, “por todos os democratas, que ansiavam por viver em liberdade e em democracia, Otelo Saraiva de Carvalho concretizou esse sonho”.
“No momento do seu desaparecimento, e pelo seu decisivo contributo, é justo render-lhe a mais sentida homenagem”, enalteceu.
À história vai competir avaliar, diz Rui Rio
O presidente do PSD, Rui Rio, reconheceu “o papel corajoso e decisivo” de Otelo Saraiva de Carvalho no 25 de Abril, considerando que será a história, com isenção, que avaliará o que “fez de bom e de mau”. "O dia da morte de Otelo Saraiva de Carvalho é momento para reconhecer o seu papel corajoso e decisivo no 25 de Abril e na conquista da liberdade”, refere o presidente do PSD numa publicação na rede social Twitter. Para Rio, é à história que vai competir, “com isenção”, fazer “a avaliação global de tudo que ele fez de bom e de mau”. “Hoje não é o dia para isso”, concluiu.
David Justino também reagiu em nome do PSD. Em declarações à TVI24 disse que” a primeira reacção por parte do PSD era de enviar à família e ao círculo de amigos próximos de Otelo Saraiva de Carvalho as condolências e manifestar o interesse em que este possa ser também um momento de reflexão sobre aquilo que fomos, aquilo que Otelo Saraiva de Carvalho representou na história recente de Portugal”.
“Nessa perspectiva, julgo que Otelo foi sempre, digamos, a imagem de herói romântico que, no fundo, nos devolveu a liberdade e que está associado, inevitavelmente, ao 25 de Abril como um dos seus principais responsáveis. Portanto, por parte dos sociais-democratas existe esse reconhecimento do papel desenvolvido por Otelo Saraiva de Carvalho”, afirmou, sublinhado, no entanto, que “podemos ter um pouco mais de reservas em relação àquilo que foi a história seguinte”.
“Otelo Saraiva de Carvalho é uma figura controversa que teve um processo de evolução em que, eventualmente, muitos se reconhecem, mas a maioria não se reconheceu, mas isso não retira em nada a importância, o relevo, a determinação que ele teve na organização das operações militares do 25 de Abril.”
"Um homem de coração enorme”, segundo Vasco Lourenço
Quem privou com Otelo Saraiva de Carvalho destaca-lhe ainda as características de liderança e de optimismo.
“Um homem de coração enorme”, disse Vasco Lourenço na RTP1, sublinhando que Portugal tem de lhe “estar grato”. Vasco Lourenço conta que foi destacado para os Açores e por isso foi Otelo que ficou a comandar as operações. Não tem dúvidas em dizer que foi ele “a figura principal da acção militar do 25 de Abril de 1974”.
“Eu costumo dizer que perdi essa oportunidade de estar nos Açores, mas com Otelo correu muito bem. Comigo não se sabe como teria corrido porque faltou fazer a prova”, afirmou.
O capitão de Abril, Garcia dos Santos, recordou, por sua vez, que Otelo era “um homem cheio de espírito de intervenção que ia atrás das suas ideias repentinas”.
Para Isabel Carmo, antiga dirigente do extinto do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP), movimento que exerceu actividade clandestina através das suas Brigadas Revolucionárias (no PRP-BR), com o desaparecimento do militar e estratego do 25 de Abril de 1974 “acaba também uma época e uma utopia”.
“A memória que guardo é a do homem que esteve à frente, que dirigiu, que chefiou os movimentos militares, e digo movimentos, porque não foi um golpe militar”, afirmou em declarações na TVI24, sublinhando que “foi preciso a coragem e a determinação daquele grupo de capitães”, em que Otelo acabou por ser aquele que criou o mapa de operações, para derrubar o regime da ditadura.
Isabel Carmo destaca o facto de Otelo ter coordenado as operações com rigor. “É interessante dizer de um homem que às vezes parece um bocado impulsivo”, disse.
Já o Chega criticou Otelo Saraiva de Carvalho por ter tido um “papel perverso e destrutivo” no pós-25 de Abril, considerando que deveria “ter cumprido a sua pena numa prisão portuguesa” e nunca ter recebido um indulto.
Numa nota, a Direcção Nacional do Chega começou por deixar “publicamente os seus sentimentos à família e amigos” pela morte de Otelo Saraiva de Carvalho, um momento que é “de dor e saudade, sobretudo para o círculo próximo”. Apesar disso, o Chega considerou que não se pode “esquecer hoje o papel perverso e destrutivo que Otelo Saraiva de Carvalho teve no Portugal pós-25 de Abril, bem como a mancha de sangue que deixou durante esse processo histórico em que foi um protagonista fundamental”.
O vice-presidente do CDS-PP Miguel Barbosa também reagiu à morte de Otelo Saraiva de Carvalho, considerando tratar-se de um dia “agridoce”, ao lembrar a sua acção na conquista da liberdade e, em simultâneo, “as atrocidades” das FP-25.
No dia em que “o CDS regista com tristeza” a morte de Otelo Saraiva de Carvalho, o vice-presidente Miguel Barbosa assegurou à agência Lusa que o partido “não se deixa embriagar pela história”. Por um lado, Miguel Barbosa lembra Otelo como “um dos principais obreiros do golpe de estado que ficou conhecido como a Revolução dos Cravos, o 25 de Abril de 1974”, reconhecendo-lhe “um primeiro acto importantíssimo para devolver Portugal à liberdade e à estabilidade de uma democracia liberal, que apenas veio a confirmar-se com o 25 de Novembro”. Mas, por outro, sublinha “aquilo que O CDS não esquece”, apontando o capitão de Abril como “um homem que, entre estas duas datas, teve atitudes e comportamentos em que contradiz tudo aquilo que parecia defender”.
Na lista do que o CDS não esquece inclui-se “o Comando Operacional do Continente (COPCON), os mandados de captura em branco e as vítimas mortais do terrorismo das FP25”, para sublinhar: “Não esquecemos que Otelo Saraiva de Carvalho era o rosto de toda essa atrocidade.”
Manuel Castelo-Branco, filho de uma das vítimas das FP-25, descreveu à Lusa o dia da morte de Otelo Saraiva de Carvalho como “mais um dia de sofrimento”, em que recordou a dor da morte do pai.
“Para muitos, morreu hoje o Capitão de Abril, para outros o responsável máximo do COPCON, para mim morreu o homem que mandou matar o meu pai e mais 14 vitimas inocentes, um bebé, o Nuno de apenas quatro meses, o Henrique, o Diamantino, o Alexandre, o Álvaro, o Adolfo, o Agostinho, o Fernando, o José, o Evaristo e o Rogério”, escreveu Manuel Castelo-Branco na rede social Facebook.
Manuel Castelo-Branco, ligado ao CDS-PP, onde foi um dos mais próximos da ex-líder Assunção Cristas, filho de Gaspar Castelo-Branco, director dos Serviços Prisionais, morto em 1986 à porta de casa, partilha que se interrogou durante muitos anos como reagiria à morte de Otelo Saraiva de Carvalho, pensando se poderia sentir “um qualquer sentimento de vingança”.
“Hoje o Otelo Saraiva de Carvalho morreu, e não sinto, não fiz, nem farei nada disso. Pelo contrário - é mais um dia de sofrimento, mais um dia em que me lembro de toda dor que este homem causou, sem que alguma vez tivesse cumprido a pena e 17 anos a que foi condenado e perdoado sem nunca se arrepender”, escreveu.
“É o capítulo final de um livro de dor e sofrimento, que marcou toda a minha vida que se encerra. Que Deus lhe perdoe, o que ele nunca se arrependeu e eu não fui capaz de esquecer”, concluiu.